Violeiros são como os antigos bardos. Têm os mesmo sonhos embora usem, civilizadamente, colarinho e gravata e andem calçados. E embora também o seu meio de locomoção não seja mais o caminhar sem fim pelas estradas poeirentas, mas as ferrovias da Companhia Paulista. Exibem-se aqui e ali, isto é, — exibem-se não é bem o termo — procuram um contato com o público. Sua arte primitiva também precisa de divulgação e compreensão como todas as artes. Esses troveiros — como os menestréis, os cantores da gesta e os sentimentais seresteiros — cantam para alguém. É uma necessidade o seu cantar, chorando mágoas em rimas tocantes e contando casos nas modas dolentes.
O Centro de Folclore de Piracicaba promoveu o espetáculo no antigo e tradicional teatrinho de Santo Estevão. Primeiro são apresentadas as modas de viola, e que incrível impressão de viagem no tempo para mil oitocentos e qualquer coisa, quando se ouve o repinicado e as modas, e com a entrada dos cantadores. Vêm dois a dois: um violeiro, que é também cantador, e o segundo que faz o contracanto.
Entram, e eles mesmos não sabem como, e a gente fica com o coração nas mãos de medo que errem, que façam fiasco, que se vão embora sem dizer nada, ou que fiquem ali parados, com aquela desoladora expressão de quem não sabe onde está. Mas o que acontece depois é magnífico. Durante o canto, adquirem aprumo. Isolam-se. Parecem fora do palco e do mundo — ou fora ou acima — porém, de qualquer modo, absolutamente inconscientes da assistência. Constroem um estranho mundo para eles. Um mundo trágico, às vezes, quase sempre triste, onde há lágrimas e dramas, amores sucedidos, facadas, fugas, tudo aquilo vindo devagarinho, monotonamente, poema dolorista sem variações. Os rostos inexpressivos dos troveiros, quase todos mestiços, com traços reveladores do desordenado caldeamento de raças, vão se animando. Mostram-se ora místicos, ora piedosos, ora exaltados.
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Catedral Submersa
De dia não se vê. As águas tremem tanto, arrepiadas pelo vento e o sol é tão fino e coruscante!
Os olhos estão demasiadamente cheios de claridade e das cores, de sol e de cintilações. É muita a luz. Não dá para ver. Depois, há muito que contemplar, longe e perto. Como tinta derramada, pelo pasto, se estende o verde-abundante do capim-gordura, capim membeca, capim melado, onde engordam e se arredondam, com o pelo lustroso, as vacas do Joaquim Pedro. Temos que olhar para os ingazeiros que se curvam gentis, cumprimentando. E temos que olhar para os chorões que num lento gesto de mágoa lamentam não sei que desditas da negra sorte.
Pela manhã passa o bando de pássaros azuis das escolas. Andorinhas do mar, em azul e branco, muito gárrulas e muito chilreantes. As marrequinhas do banhado erguem voo aos bandos, ruflando as asas, desaforadas: Qual! Qual! Não dá para reparar no espelho da água tranquila.
Passam os leiteiros em carroças, sacolejando as latas. E os buracos de cangalhas escuras, e orelhas em pé. E boiadas em atropelo, animais esbarrando uns nos outros, sujos, cascos barrentos, orelhas pendentes. E o boiadeiro com a boca no berrante, arrancando tão sentida queixa! A poeira se ergue, redemoinha, o vento a leva. Quem vai reparar no espelho da água tranquila?
À tarde o passo é mais lento, o ar mais sereno, as cintilações se apagaram num tom neutro, entre cinza e lilás, e as águas se alisam, múrmuras. Os lambaris feitos de prata e sol se esconderam no fundo. Tardinha bem tardezinha de mugidos longos nas pradarias, os passos na ponte, tem um sentido de retorno e um jeito de fadiga. Igreja, não é nenhuma, porém a matriz de Santo Antonio, muito lírico, toda clara e alongada, de pontas agudas, em estilo romano, está sobre a colina como uma grande garça prestes a desferir o voo. Começam a se delinear na água quieta os seus contornos. Ainda muito esfumados, muito apagados. Quando o martim-pescador roça na água (que reflete um sol de sangue) a ponta reta da asa, ela estremece um pouco. Assim como estremece quando o pescador atrasado para o jantar joga pela última vez a linha. É à noitinha que percebemos afinal que há uma catedral submersa. Quando se acendem as luzes. Dentro da água negra, mais espessa não sei como, calada que impressiona, a igreja surge traçada em pontas de luz. Nem um brilho, nem uma asa, nem um murmúrio. Amarelo sobre o negro, a catedral no fundo d’água mais real e mais bela que a que vemos todo o dia, todos os dias, o ano inteiro, garça branca na colina. Ah! É mister que a noite venha, que venha a treva, para vermos. Submersa na noite da ausência a catedral quão bela se destaca, só, serena, com um brilho lustral de água ou de lágrimas.
(Nem uma cintilação, nem uma asa, nem um murmúrio…)
O Rio do Vale do Sol
No ano passado estive em janeiro no Vale do Paraíba, e era chuva que Deus dava, mas chuva mesmo, sem um momento de estiada, a água suja inundou a várzea, o bairro transformou as ruas em amostra da era primordial, as comunicações para os lados da Bocaina foram interrompidas. Rodaram todas as pontes, exceto as construídas por Euclides da Cunha. O leite deixou de descer das fazendas da Serra. Pessoal dos Macacos, das invernadas para além do Cachoeirão, ficou mais uma vez isolado nos seus píncaros inacessíveis.
E era chuva que Deus dava, pródigo Alá. Nesse ano a água subiu até a laranjeira, e onde havia perfumadas flores e abelhas doiradas rodopiavam as folhas amarelas em torno das raízes que fora noiva do sol, nadavam as desaforadas traíras. E então neste ano, fui tarde para o Vale do Sol, meu Vale. Esperava que os belos dias tivessem vindo. E que me esperassem, apesar de brigados comigo, por um motivo que contarei depois, o pássaro, a manhã e a flor. Pois, amigos, era chuva que Deus dava, chuva e mais chuva, que entrou por fevereiro adentro, estragou o carnaval, molhou a presença e a paciência, impediu os passeios e ainda por cima não me deixou ir tomar o tal caldo de cana prometido em tempos que já lá vão pelo amigo Ditinho do Ciano (continua devendo). Afinal a temporada não ficou estragada de uma vez, por que arrumaram linhada e anzol, vara de bambu, banco, saco de estopa e chapéu de palha e os homens da casa acharam jeito de pescar na porta da cozinha, enchendo cestas e mais cestas de traíra da miúda e corimbatá e vindo todo o santo dia incomodar a gente com umas enormes fieiras de lambari, para fritar.
Até que o esporte perdeu de vez a graça, depois de ter passado pelas variantes da pesca de peneira e das tarrafadas na água barrenta do campinho. E viemos embora. Entrementes, aconteceu a tragédia de Caraguatatuba, e agora leio que as águas do Paraíba continuam subindo. Rio, meu rio, do Vale do Sol, tornado monstruoso e semeando a morte pelo caminho. Que devora as colheitas do dourado arroz, apendoado, fazendo-as apodrecerem na lama. O que empurra com monstruosas mãos de água assassina as choças dos piraquaras. Mas não quero mais falar desses assuntos. O pássaro está perdido. A manhã está perdida. E está perdida a flor. Afinal nada novo.
Lucrécio, há mais de dois mil anos já afirmava que os deuses, se é que existiam, (ressalva dele) não se interessavam de maneira nenhuma pelos assuntos humanos.
As mães na lenda e na história
Combinando erudição e sabedoria popular, Ruth Guimarães evoca neste “As mães na lenda e na história”, publicado originalmente pela Editora Cultrix, em 1960, a vida e o exemplo de mulheres que, graças à fama alcançada pelos filhos que geraram, ocupam lugar certo nas páginas da História.
Para recontar as histórias dessas mulheres, ora obscuras e dramáticas, ora prosaicas e pitorescas, a autora se vale de toda a sua capacidade narrativa, já reconhecida em romance como “Água Funda”, contos e crônicas e estudos de folclore como “Os filhos do Medo”, “Contos Índios” e “Contos Negros”.
Ao longo do livro, Ruth cuidou, sobretudo, de indagar se essas mulheres souberam ou não cumprir cabalmente a sua tarefa de mães. Árdua e sublime tarefa que, logo no primeiro parágrafo, a autora define: “um, grande amor e uma infinita compaixão são as qualidades que distinguem a mãe excelente – aquela que
é refúgio e glória do filho, esperança e salvação, âncora, bússola, raiz e estrela – da outra que é apenas mãe comum”.