Um tal de Zé
A velhice desnudou dignidade, desnudou condição humana. Só não conseguiu tirar-lhe essência: a vida que teve, reproduzida nas vidas que fez,
biogenéticas ou não.
A tecnologia calçou as botas de 7 léguas e passou por cima de nossas cabeças, pensava José. O mundo da produção captação transmissão processamento armazenagem das imagens aperfeiçoa-se, permite uma construção tão perfeita que é difícil dizer se o que vemos é real ou uma reconstrução. Máquinas diferentes... “que história é essa de só apertar um botãozinho?” espantava-se José. Ele não admitia as simplificações, porém sua escolha não impedia os passos da tecnologia. Aos poucos foi sendo dispensado de suas funções, já não mais ensinava a ver. E cegou.
Mesmo se formos bons para o rio, às vezes ele pode ficar colérico. Ele enche, incha, transborda, atravessa seus limites e invade. Depois se arrepende,
se acalma, volta, esvazia. Como se nada tivesse acontecido. Nem vê o que deixou para trás. Destroços não lhe dizem nada, somente coisas no caminho.
Botelho Netto por si mesmo
Quando eu era menino... Não! não se preocupem, não vou contar a história ab ovo. E nem é preciso: a fração de um dia, algumas horas bem vividas podem compor, inteirinha, a travessia.
Bem... antes dos sete anos aprendi a ler com meu pai, a poder de reguadas. É que eu, sabendo ler, mamãe, analfabetinha, ganhava um ledor de novelas, daquelas distribuídas em capítulos, às quintas-feiras. Aprendi a ler, bem, desempenado, não de soquinho como fazem os repórteres de televisão, hoje. Então, no segundo ano do Grupo, setembro de 1928, festa da ave, fui escalado como representante da classe para declamar. No fim, a comemoração não passava (não passsa) de um rosário de declamações em louvor de nossa irmãzinha ave. Nunca fui bom de decoreba e tentei sair dessa mas a professora, D. Eufrásia, quem diz que me livrava a barra?
No pátio. Sem cobertura, sol de lascar. Todo mundo na fila, imóvel, rígido, cada aluno-poeta desesperando a vez de subir no pelouro. O “Pássaro cativo”, de Olavo Bilac – Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, o próprio nome da fera já se harmoniza num sonoro alexandrino – a minha poesia eu a ouvi seis vezes antes da minha... execução. E cada vez que um menino desfiava o “Pássaro cativo” – várias estrofes, mais de cinquenta versos, acho até que uns quinhentos, ficava mais infeliz, mais vazio, mais desamparado. Terminei o poema? qual o quê! Fui um fiasco: fiiiiiiiiii, fiiiiii! Fiasco, a coisa mais humilhante e que as outras crianças, com a crueldade da criança, não perdoam.
Me fiz homem agarrado aos livros e aos poemas. E hoje, o que estou fazendo aqui? Me libertando do Pássaro Cativo, de Bilac, de dona Eufrásia, da vaia dos meninos. Por isso vim, não infeliz, nem desamparado, mas por meu gosto e de alma leve colocar-me ante vocês para contar esta historinha sem fundo moralístico, sem nenhuma profundidade psicológica, sem nenhum mérito.”