De dia não se vê. As águas tremem tanto, arrepiadas pelo vento e o sol é tão fino e coruscante!
Os olhos estão demasiadamente cheios de claridade e das cores, de sol e de cintilações. É muita a luz. Não dá para ver. Depois, há muito que contemplar, longe e perto. Como tinta derramada, pelo pasto, se estende o verde-abundante do capim-gordura, capim membeca, capim melado, onde engordam e se arredondam, com o pelo lustroso, as vacas do Joaquim Pedro. Temos que olhar para os ingazeiros que se curvam gentis, cumprimentando. E temos que olhar para os chorões que num lento gesto de mágoa lamentam não sei que desditas da negra sorte.
Pela manhã passa o bando de pássaros azuis das escolas. Andorinhas do mar, em azul e branco, muito gárrulas e muito chilreantes. As marrequinhas do banhado erguem voo aos bandos, ruflando as asas, desaforadas: Qual! Qual! Não dá para reparar no espelho da água tranquila.
Passam os leiteiros em carroças, sacolejando as latas. E os buracos de cangalhas escuras, e orelhas em pé. E boiadas em atropelo, animais esbarrando uns nos outros, sujos, cascos barrentos, orelhas pendentes. E o boiadeiro com a boca no berrante, arrancando tão sentida queixa! A poeira se ergue, redemoinha, o vento a leva. Quem vai reparar no espelho da água tranquila?
À tarde o passo é mais lento, o ar mais sereno, as cintilações se apagaram num tom neutro, entre cinza e lilás, e as águas se alisam, múrmuras. Os lambaris feitos de prata e sol se esconderam no fundo. Tardinha bem tardezinha de mugidos longos nas pradarias, os passos na ponte, tem um sentido de retorno e um jeito de fadiga. Igreja, não é nenhuma, porém a matriz de Santo Antonio, muito lírico, toda clara e alongada, de pontas agudas, em estilo romano, está sobre a colina como uma grande garça prestes a desferir o voo. Começam a se delinear na água quieta os seus contornos. Ainda muito esfumados, muito apagados. Quando o martim-pescador roça na água (que reflete um sol de sangue) a ponta reta da asa, ela estremece um pouco. Assim como estremece quando o pescador atrasado para o jantar joga pela última vez a linha. É à noitinha que percebemos afinal que há uma catedral submersa. Quando se acendem as luzes. Dentro da água negra, mais espessa não sei como, calada que impressiona, a igreja surge traçada em pontas de luz. Nem um brilho, nem uma asa, nem um murmúrio. Amarelo sobre o negro, a catedral no fundo d’água mais real e mais bela que a que vemos todo o dia, todos os dias, o ano inteiro, garça branca na colina. Ah! É mister que a noite venha, que venha a treva, para vermos. Submersa na noite da ausência a catedral quão bela se destaca, só, serena, com um brilho lustral de água ou de lágrimas.
(Nem uma cintilação, nem uma asa, nem um murmúrio…)