Mal começam os calores abafadiços de fim de ano o noticiário se enche de informações sobre crianças pobres desidratadas, das favelas e cortiços. Mal o inverno desponta e vem o tempo seco, lá vêm as doenças respiratórias. Ainda mais agora que a fome vem tirando a resistência da infância, e à nossa porta se multiplicam os pedintes.
O máximo que se pode fazer nas circunstâncias, e é o que fazem os médicos dos serviços de assistência, é acudir ao pequeno de vida ameaçada, deixá-lo fora de perigo, e devolvê-lo ao cortiço. Para passar fome de novo. E então morrer. A desidratação já se chamou colerina e era uma espécie de cólera em ponto pequena, mas não a ponto de poupar os corpos de que se apossava. Que eram afinal a gastrite e a gastro-enterite, senão o depauperamento, a pouca resistência, a falta de alimentação adequada? Que era a colerina? Que é tudo isto senão a fome, devoradora de crianças? Irmã Ângela, a devotada irmãzinha de um hospital de pobres, dizia, com uma expressão celestial na face macerada: “Criança é tripa!”, definição que não prima pela beleza, nem pela poesia, mas tem o que uma definição precisa: é concisa e exata.
Que lá na minha terra morria muita criança: desses calores e desses mormaços, de leite pouco e de pobreza muita. Dona Alexandra, assessorada pelo filho marceneiro, fazia o caixãozinho azul ou rosa, de fazendinha colorida e brilhosa, ralinha, ordinária e enfeites de galão prateado. O enterro vinha dos bairros: do Pitéu, da Lagoa Seca, do Morro Vermelho, de onde também chegavam carregados, nas noites de sábado, homens lanhados de faca. Pelas ruas dessa Cachoeira, com aterros de moinha de carvão de pedra, toda negra e ardente, enterro de criança tinha (e ainda tem) uma curiosa particulariedade. Ia o caixão na frente, o anjinho entre flores, com uma capela de rosas de papel, o rosto descoberto, e atrás meninas carregavam a tampa. Não havia enterro de criança sem bimbalhar de sino. Morte de menino até parece que era motivo de regozijo, procissão percorrendo as ruas, mortezinha sem choro, mocinhas de braço dado, com ramalhetes de sempre-viva e rosa amarela na mão, manjerona cheirosa, alecrim. E o sino bimbalhando, música, festa. Ouvia-se o comentário desiludido do povo, em suspiros doidos: descansou. Feliz quem vai em criança. Livra de muito sofrer. Quisera eu ter ido assim, pequenino.
Mas, qualquer dentadinha à toa de cascavel, ou de urutu, o tenebroso, era um carreirão do apavorado para a santa casa: me salve, irmã Ângela, minha Nossa Senhora!
Gente impávida da minha terra. Ninguém, mas ninguém querendo deixar de sofrer.