O Núcleo de Estudos e Pesquisas Étnico Raciais (NUPE) da Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB/Unesp) aproveitou o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, comemorado em 25 de julho, realizou na Pinacoteca Fórum das Artes um evento com programação diversificada: palestras, atividades culturais, apresentação de trabalhos e relatos de vivências, e muito debate, muitas questões. Em um espaço seguro, onde as pessoas se sentem acolhidas, onde se pode falar e ser escutado, onde há construção coletiva. Onde se pode construir uma rede de apoio porque as pessoas, – os docentes, discentes, palestrantes, coordenadores, organizadores – falam a mesma língua, têm um lugar de fala e dialogam.
O tema proposto para Júnia Botelho, representante do Instituto Ruth Guimarães, foi sobre a ancestralidade, ou mais precisamente: uma palestra sobre os saberes ancestrais, oralidade e produção de memória. As moderadoras foram a doutoranda Gabriela Botelho e a sra. Aparecida Donizete. Não por acaso, Gabriela e Júnia são parentas, a prima Gabriela, neta de primo, distante no tempo, mas de uma proximidade trazida pelos ancestrais, de uma voz que escutamos e não sabemos de onde vem. Aparecida fez perguntas muito pertinentes. Nem sempre temos respostas para todas as questões, mas nem por isso elas devem deixar de ser colocadas. A dor é ancestral? Não sei, mas certamente a felicidade é. A felicidade de ter comigo, a meu lado, como um apoio, Gabriela, que nem era Botelho, nasceu Ferreira e foi mudando seu nome ao longo do tempo. Por quê? Porque era assim que tinha de ser. E porque assim foi. Doemos, sim, choramos, sim, e isso não deve ser esquecido. Mas a dor ancestral não deve doer somente para nos fazer chorar, cantemos, dancemos, porque temos esse banzo, esse profundo sentimento de melancolia e saudade da terra natal, da família e da liberdade, que faz parte de nossa história e de nossa pele, sentimos, mas não podemos morrer por ele – devemos viver por ele e fazer disso um passo para ir além e fazer viver nossa história de outra maneira.
O sobrenome. Então não temos sobrenome? Perdemos o que tínhamos e não somos mais nada? Não temos mais a ancestralidade? Somos aqueles que fomos, e que nem sabemos mais de onde viemos, mas que trazemos na pele, e ganhamos o que conquistamos. As particularidades e especificidades daqueles que aprendemos a ser, à força ou com o tempo adaptando-nos ao que temos. Quem eu sou e de onde eu venho está ligado a este nome que não tenho? Eu sou minha mãe, minha avó, minha bisavó e me deixo em minha filha. A ancestralidade é a filha que eu não tive e, no entanto, é a filha que se tornou. Minha filha é branca de mãe preta, Gabriela é preta de mãe branca e, no entanto, somos ela e eu da mesma linhagem. Meu nome é aquela que me tornei. As tradições podem recomeçar. Ou começamos outras. Os saberes ancestrais ganham novos sabores, o sabor da memória, que está ressignificada nas relações intergeracionais, só temos que saber como passar e receber os saberes e os sabores. Temos de resgatar esse ciclo de cuidados, temos de pertencer e para isso lembrar o tempo todo, fazer da memória não um canto de lamentos, mas um canto de ninar e fortalecer nossa identidade. A luta pela nossa preservação, pela nossa existência e pela nossa dignidade vem do tempo de conversar e de passar a informação. Cuidemos da alma!
Ruth Guimarães conta histórias: “Escrevo para que, afinal? Para obter honra e glória? Para poder dizer tudo o que penso?”, questiona a autora em um dos trechos do seu livro Contos de cidadezinha. “Ah! Eu conto histórias para quem nada exige e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim.” Ela conta histórias e nós não estamos mais contando. Não sabemos mais a origem de nosso nome. Só não teremos mais nome, se não tivermos mais memória. A jornada da mulher negra trouxe novamente à tona o nome de Ruth Guimarães. E de todas essas mulheres enfermeiras, doulas, médicas, professoras, assistentes, que estavam ali assistindo, conversando, palestrando, ajudando a fazer a comida para os intervalos, declamando, rindo, se emocionando o que escutamos? Histórias. Comovidas e comoventes. Pessoas ocupando seu espaço. Representando e sendo representadas por seus pares.
Houve uma reivindicação muito apropriada que saiu dessa jornada: é necessário haver mais representatividade, os nossos precisam fazer parte das decisões, porque somente assim a universidade será verdadeiramente democrática. O povo preto não está preparado para concorrer a esses postos de decisão? Então como preparar o povo preto? Como preparar concursos de forma mais justa? A jornada não deve ser somente teórica, mas apresentar propostas para serem enviadas a responsáveis governamentais. Para que seja um movimento mais efetivo. Mais ação, mais soluções, instrumentalizando a população da jornada. Das jornadas. Da universidade. Do mundo.
Ruth Guimarães deu o nome a um prêmio. Esperemos que seja inspiração.