O centenário de Ruth Guimarães reaviva obra no limite entre erudito e popular

Escritora de ‘Água Funda’ foi a primeira negra a ganhar projeção nacional, com o romance publicado em 1946

Reportagem de Tayguara Ribeiro

(Folha de S. Paulo, 13.nov.2020)

Era um terreno com muitas árvores, perto do rio Paraíba e perto do trilho do trem. Ali cresceu e ganhou corpo uma paixão pela leitura que levaria Ruth Guimarães a transpor os limites da pequena cidade de Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo. Naquela casa onde nasceu, cresceria uma imaginação que, transposta para o papel, ganharia vida em mais de 51 livros entre ensaios folclóricos, romances, contos, traduções e crônicas.

A mescla entre erudição e cultura popular que Ruth Guimarães imprimiu em boa parte de sua obra e o pioneirismo de ter sido uma das primeiras mulheres negras a ter um romance publicado no Brasil mostram a importância de revisitar sua produção neste 2020, que marca seu centenário.

Água Funda - Ruth Guimarães

Água Funda – Ruth Guimarães

Guimarães foi a primeira escritora negra brasileira a ganhar projeção nacional. O romance “Água Funda”, publicado em 1946, rompeu barreiras não só para ela, mas também para gerações de outros escritores negros que sentiram em seu trabalho representatividade cultural e incentivo para ousar buscar um espaço. Ela morreu em 21 de maio de 2014, aos 93 anos.

“A Ruth é conhecida pelo romance ‘Água Funda’, essa é sua grande obra”, diz o escritor Tom Farias, autor do livro “Carolina: Uma Biografia”, sobre a escritora Carolina Maria de Jesus, e curador da FlinkSampa, festa de literatura e cultura negra.

“Penso que a área dela era realmente a ficção e ‘Água Funda’ é sua obra máxima”, diz. Farias lembra, no entanto, que existe muito material sobre Ruth Guimarães ainda a ser explorado –”o universo dela é muito grande”.

Em 2008, a escritora assumiu uma cadeira na Academia Paulista de Letras. Guimarães era formada em filosofia pela Universidade de São Paulo e tradutora do latim, tendo vertido ao português “O Asno de Ouro”, único romance latino da Antiguidade a sobreviver até os nossos dias.

Além de “Água Funda”, outra marcante criação da escritora foi “Calidoscópio – A Saga de Pedro Malazarte”, fruto de uma pesquisa que reuniu centenas de histórias sobre esse peculiar personagem do imaginário brasileiro.

Guimarães foi cronista deste jornal entre 1961 e 1969 e entrevistou, no começo de 1969, Érico Veríssimo.

Para celebrar seu centenário, a Faro Editoral publicou neste ano “Contos Negros” e “Contos Índios”, dois livros inéditos da autora. Outros dois devem ser lançados no primeiro semestre do ano que vem, “Contos da Terra e do Céu” e “Contos de Encantamento”.

Os livros tratam de espiritualidade e misticismo e são parte do trabalho de campo em que Guimarães pesquisou, no Vale do Paraíba, no sul de Minas Gerais e nas cidades paulistas de Bragança Paulista, Atibaia, Suzano e Mogi das Cruzes, histórias afro-brasileiras e indígenas passadas de geração em geração oralmente.

Outra homenagem ocorre na oitava edição da FlinkSampa, nos dias 19 e 20 de novembro, que, organizada pela Universidade Zumbi dos Palmares e pela ONG Afrobras, lança a edição comemorativa de 70 anos do livro “Os Filhos do Medo”, em que a escritora aborda as superstições em torno do diabo que rondam boa parte do imaginário popular.

Mesmo que “Água Funda” seja o livro mais famoso e lembrado da autora, seu filho, Joaquim Maria Botelho, de 65 anos, conta que a mãe tinha um carinho especial por “Contos de Cidadezinha”, publicado em 1996. “Ela gostava e eu também. E acredito que foi [sua obra] mais madura”, diz o jornalista e também escritor.

“Escrevo para que, afinal? Para obter honra e glória? Para poder dizer tudo o que penso?”, questiona a autora em um dos trechos do livro. “Ah! Eu conto histórias para quem nada exige e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim.”

Mãe de nove filhos, Guimarães começou a carreira jovem e enfrentou muitos obstáculos. “Acho que ela não tinha a dimensão da importância que poderia ter”, diz Botelho sobre o início de carreira da escritora e de sua percepção, naquele momento, sobre a representatividade de ser a primeira mulher negra a publicar um livro de grande repercussão no Brasil, poucas décadas após o fim da escravidão.

“Claro que ela sabia que a vida dela enquanto negra era muito difícil. Ela trabalhou em empregos modestos, lavou prato. Alguns patrões, depois de um tempo, descobriram que ela tinha leitura, conhecimentos, e ela acabou virando secretária do Laboratórios Torres [empresa farmacêutica]”, conta Botelho sobre a chegada de Ruth Guimarães a São Paulo. “Ela era muito interessada por literatura, desde jovem.”

Ela chegou à capital paulista aos 17 anos, logo depois da morte da mãe. Sozinha na cidade, conseguiu um emprego, alugou uma casa, na Vila Formosa, bairro da zona leste, e trouxe os irmãos.

Da infância, dos ensinamentos dos avós e das andanças pelo interior vieram as inspirações para contar as histórias, tradições e sabedorias populares. Na juventude em São Paulo, por meio de colegas e dos trabalhos que exerceu na capital paulista, surgiram amizades com pessoas ligadas à literatura.

Mário de Andrade deu boas orientações a ela quando a autora mostrou seus manuscritos. Os dois se conheceram no começo dos anos 1940, depois que Guimarães enviou uma carta ao autor de “Macunaíma”. Ela mostrou a ele as pesquisas que tinha feito e que resultaram no livro “Os Filhos do Medo”.

Da convivência com nomes como Jorge Amado e Péricles Eugênio da Silva Ramos surge admirações mútuas. Quando, aos 26 anos, ela publica “Água Funda”, Antônio Cândido faz críticas favoráveis ao livro. Os dois se tornariam amigos a partir dali.

Segundo Tom Farias, a obra da Ruth Guimarães pode ser dividida em três ou quatro partes. A parte da ficção, com romance e contos, os estudos folclóricos brasileiros, as crônicas em jornais –a escritora atuou em jornais da capital paulista, do interior e até de outros estados– e a poesia —”ela é precoce, começou a publicar com dez ou 13 anos poemas em jornais de Cachoeira Paulista”.

Fernanda Rodrigues de Miranda diz que a pluralidade foi a marca da carreira de Guimarães. “Ela tem uma produção intelectual muito variada, que passa por vários gêneros discursivos, como conto, crônica, romance, tradução. Mas ela era também uma grande pesquisadora, muito interessada nos universos culturais e simbólicos da região do Vale do Paraíba”, diz a doutora em letras pela USP. “Ela recolheu desses universos algumas preciosidades, que depois se tornaram matéria-prima para sua escrita literária.”

Segundo Miranda, Guimarães trabalhava com os materiais que “aprendemos a entender como modernistas, a fala e a paisagem do Brasil profundo, a estética menos formalista e mais espontânea, a presença de lendas, contos orais e o universo mágico da cultura caipira”. Porém, lamenta a pesquisadora, a escritora ficou à margem dos processos de canonização modernista.

Botelho lembra que problemas familiares dificultaram, em alguma medida, a presença da escritora nos círculos literários. “O meu pai ficou doente, com tuberculose, e ela precisou cuidar dos filhos. Depois de se afastar, retomar fica difícil”, avalia ele.

“O fato de ser negra, pobre, mulher e vinda do interior jogou contra ela na carreira”, diz o filho.

Segundo Miranda, Guimarães é uma autora centenária que ainda precisa ser descoberta. “Ela não está nas escolas, por exemplo, e não aparece nos cursos de letras ainda”, diz. “Ela é uma grande autora, seu romance traz uma elaboração estética para a experiência de ser brasileiro e nos permite refletir sobre os nossos entraves, ainda herdeiros da velha síntese casa grande versus senzala.”

De acordo com a pesquisadora, no Brasil, o sistema literário se sustenta no silenciamento sistêmico da autoria negra. Isso se aplicaria, segundo ela, a todas as instâncias do texto, desde a pesquisa, no corpo docente das universidades, nos livros didáticos, nas traduções, edições e reedições, incluindo o jornalismo e os prêmios literários. “Em todas essas instâncias a presença negra é ausente ou minoritária”, diz Miranda.

Segundo Miranda, é fundamental revisitar escritoras como Ruth Gumarães para ajudar a criar novas narrativas e para abrir espaço para novas vozes. Botelho diz que a força da produção de sua mãe já conseguiu impulsionar outros trabalhos. “Eu não tenho dúvidas de que ela foi inspiradora para muita gente.”

Link da matéria: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/11/centenario-da-autora-ruth-guimaraes-reaviva-obra-no-limite-entre-erudito-e-popular.shtml

Ruth Guimarães: “Não é fácil ser mulata”*

Por Ênio José da Costa Brito[1]

Resumo:A comunicação aponta alguns princípios básicos da Teoria Pós-colonial referente à Literatura, ilustrando com a apresentação da obra de uma intelectual negra no circuito cultural branco do Estado de São Paulo. Ruth Guimarães, professora, romancista, ensaísta, pesquisadora de tradições populares, tradutora que sempre deu voz e vez as tradições populares, tem sua obra muito pouco estudada. Sua obra literária dialoga com o universo artístico-cultural brasileiro-popular ou erudito- e, inscreve-se no contexto literário como signo de identidade local e nacional. O esquecimento da contribuição de escritoras negras tem conseqüências históricas e sociais, pois, contribui para a desqualificação sócio-racial dos afro-brasileiros e fomenta tendências racistas.

Introdução

Meu envolvimento, com a Teoria Pós-Colonial,começou quando passei a estudar questões relativas à diáspora africana. A negação, o não reconhecimento da contribuição dada pelos escravizados na construção das nações americanas, em especial do Brasil, me incomodava.

Hoje, tendo aprofundado a compreensão das propostas teóricas e práticas da Teoria Pós-Colonial e ampliado minha visão da longa experiência diaspórica, partilho a convicção adquirida acerca da potencialidade epistemológica presente na Teoria Pós-Colonial com mestrandos e doutorandos em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sua utilização na análise do passado e do presente tem contribuído para desvelar a real contribuição dada pelas culturas africanas à nossa visão de mundo.

No primeiro semestre deste ano, nossa atenção voltou-se para a literatura dos povos que passaram pela experiência colonizadora, o que possibilitou reflexões e discussões  acaloradas. Relembro algumas questões: é possível o surgimento de literaturas desvinculadas do padrão eurocêntrico? Quais os caminhos para uma literatura e estudos pós-coloniais autônomos? Como o sujeito pós-colonial visualizado na literatura pode superar o mutismo e assim narrar e anunciar as suas experiências como o Outro?

Em meio a estas e outras discussões, recebi a Revista Ângulo-Cadernos do Centro Cultural Teresa D’Ávila[2], um número monográfico, todo ele dedicado a  escritora.Ruth Guimarães. Ao lê-lo, percebi quanto os textos iluminavam as discussões que vínhamos realizando. A revista resgata a vida e a obra de Ruth Guimarães, que uma mentalidade colonial, ainda presente entre nós, acabou relegando ao esquecimento e ao silêncio.

Nossa intenção nesta comunicação é num primeiro momento relembrar a vida e obra da autora e em seguida olhar sua obra à luz da Teoria Pós-Colonial.

Do vale do Paraíba a paulicéia desvairada.

Ruth Guimarães

Ruth Guimarães

Aos 13 de junho de 1920, Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, no vale do Paraiba. Muito cedo, perdeu os pais, o pai aos 12 anos e a mãe os 16, morou com os avós desde os 8  ou 9 anos de idade.

Numa de suas crônicas, intitulada Entardeceres, escreveu: “Fiquei órfã de pai e mãe muito cedo e fui acolhiada por meus avós maternos, já bem idosos, pois minha mãe era a caçula de onze filhos. Minha avó era uma curiboca, mestiça de preto, indio e português…meu avô português”(GUIMARÃES,2014, p.32).

Em outra crônica, escrita aos noventa anos, intitulada Anoitecer, relembra:

eu vivia na e com a velhice, sem estranhá-la porque a meninice se adapta facilmente.Os meus dois velhos, à medida que a vida continuava eles a iam perdendo…Quando eles precisaram realmente de mim, eu não estava mais em casa tinha saido para trabalhar na capital (GUIMARÃES. 2014, p.34)[3].

Aos 17 anos mudou-se para São Paulo, com seus quatro irmãos menores, onde trabalhou e estudou, com muitos sacrifícios, é verdade. Costumava dizer que em São Paulo “ficou excepcionalmente trabalheira”. Formou-se em Letras pela USP.

Sua saga literária começou com um ato de coragem, levando uns escritos seus ao romancista Cid Franca, que a apresentou ao critico literário Edgar Cavalheiro, que  publicou algumas de suas poesias no antigo O Roteiro. Quando uma de suas poesias foi publicada, Ruth Guimarães entrou em profunda crise existencial e parou por um bom tempo de escrever. Voltou a escrever bem mais tarde, nas suas palavras: “Depois de dois anos, uma bela tarde, sem mais nem menos, escrevi uma página inteira. Amassei e joguei no lixo. Meia hora depois estava de joelho diante do cesto de papéis procurando a folha. Achei-a,   continuei e saiu “’Água Funda”(GUIMARÃES. 2014, p.11)[4].

Casou-se com seu primo José, que faleceu em 2001, na chácara da família em Cachoeira Paulista. Constituíram uma família numerosa, que viveu em continuo sobressalto, pois, os filhos vieram ao mundo com doenças raras, com excessão do quarto  Joaquim Botelho Maria. Dos nove filhos, três eram portadores da sindrome de Alport, os outros também apresentaram problemas de saúde.Sem descuidar da familia, “Ruth conseguiu publicar mais de 50 livros, de contos, pesquisas folcloricas, traduções do frances e do latim e peças de teatro” (BOTELHO, 2014,p.29).

Bem mais tarde cursou Dramaturgia e Critica na Alfredo Mesquista. Por 35 anos, ensinou língua portuguesa em colégios estaduais. Ao se aposentar voltou para a chácara da família em Cachoeira Paulista. Aos 88 anos encontrava-se à frente da Secretaria de Cultura de sua cidade e ainda dirigia a Museu de Folclore Valdomiro Silveira. Assumiu a cadeira 22 da Academia Paulista de Letras, em 18 de setembro de 2008(Cf. BOTELHO, 2014, p.29).

Projeto literário.

Botelho extrai de uma das crônicas de sua mãe a opção literária dela:

Ah! Eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Essa é a única humanidade disponível para mim. Quem me dera escrevesse com suficiente profundeza, mas claramente e simplesmente, para  ser entendida pelos simples  e ser o porta voz de seus anseios”(BOTELHO, 2014, p.7).

Projeto literário corajoso, na contra-mão, vindo de quem vem, uma escritora negra que se debruça sobre histórias presentes nas bordas, “histórias da roça, de gente da roça, do caipira”. Sem negar suas raízes, afirma claramente: “Nós precisamos saber da raiz negra de onde viemos. A história negra está por fazer, a literatura negra está por fazer, a poesia negra está por fazer”(GUIMARÃES apud BOTELHO, 2014, p.7).

Continuando sua fala no depoimento concedido ao Seminário Encontro de Gerações, promovido pelo Museu Afro-Brasil, em 2007, diz : “Eu não tenho paciência. Não sou uma criatura paciente, mas sou uma criatura alegre, graças aos meus ascendentes Negros “( GUIMARÃES  apud BOTELHO, 2014, p.8).

Ruth Guimarães se define como uma mulher pobre, negra e caipira. O que certamente devia causar certa estranheza no seu meio. Para Ana Paula Cianni Oliveira que escreveu sua dissertação de mestrado sobre Água Funda,“ Ruth Guimarães sente-se ligada à voz feminina, à dos marginalizados,aos ecos de uma étnia historicamente oprimida e finalmente, à voz caipira”, ( OLIVEIRA apud BOTELHO, 2014,p.7). O que leva Oliveira a afirmar na conclusão de sua pesquisa:

O romance de estreia de Ruth Guimarães está inserido e dialoga com o projeto estético modernista, recuperando discursivamente singularidades do espaço regional representado ficcionalmente. Partindo do principio de que a cultura é, como afirma Laraia (2009), a lente através da qual os homens concebem o universo, Água Funda revela parte dessa lente, pormenorizando o universo rural caipira, ao evidenciar posicionamentos axiológicos ou modos como esse grupo concebe o mundo, o homem, a natureza, as relações humanas, etc, a partir de uma focalização especifica (OLIVEIRA, 2014, p.20).

Numa entrevista, publicada no jornal O Escritor da UNB- União Brasileira de Escritores, Ruth Guimarães se apresenta como uma escritora regionalista que vive e busca “transmitir com fidelidade e apuro linguistico a maneira de pensar e de viver do homen do povo”(GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014, p.107).  Nesta mesma entrevista, ao comentar a obra Guimarães Rosa, que a admirava, prova deste afeto são os livros Sagarana Grande Sertão: Veredas, autografados e dados por ele a Ruth Guimarães, ela afirma  que:  Sagarana é a grande obra de Guimarães Rosa, pois ele viveu “ficou subjugado por aquela força que vinha da terra  e das pessoas da terra”( GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014, p.108).

Ela se queixa do fato de se poder contar nos dedos os escritores regionalistas.Na atualidade “a literatura regionalista se caracteriza pelo seu ritmo brasileiro, por retratar uma somatória de cultura, cultura da cidade pequena, cultura da fazenda”(GUIMARÃES, 2014, p.107). Pergunta então: “Onde está ela? Onde podemos buscá-la? Qual é o escritor que traz isto pra gente? (GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014,p.108).  Na sua visão,

O escritor [regionalista] precisa ser uma pessoa do povo, que vive o que o povo vive, e que tenha burilado sua linguagem a ponto de ser capaz de transmitir com fidelidade e apuro lingüístico a maneira de pensar e viver do homem do povo. Eu sou caipira. Eu vivi a cultura da cidade pequena, e contei uma história (no romance Água Funda, de 1946) que respeita o pensamento e a linguagem caipira. E não só isso, mas respeitando a maneira do caipira de contar uma história,a sua maneira de pôr a linguagem( GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014, p. 107-108)

Entre suas obras podemos enumerar: Filhos do medo[5], texto no qual volta-se para a figura do diabo e suas manifestações que povoam a imaginário das pessoas no Vale do Paraíba. Escreveu, ainda, Lendas e Fábulas do Brasil, História de Onça, Histórias de Jabuti e Calidoscópio- a saga de Pedro Malazarte entre outros[6]. Tradutora de inúmeros textos clássicos franceses, como Historias Fascinantes, de Honoré de Balzac, História de Alphose Daudet, Os mais brilhantes contos de Dostoiwski[7]. Do latim traduziu de Lucio Apuleo, O Asno de Ouro[8]. Autora, também, de um Dicionário de Mitologia Grega, por sinal muito bem aceito pelos estudiosos[9]. Nestas traduções, em geral, as notas e as introduções eram de Ruth Guimarães.

Para caracterizar Ruth Guimarães, romancista, ensaista e pesquisadora das tradições populares, tomo emprestado uma expressão de Eduard Glissant, “Ruth Guimarães é uma escritora risomática”[10].

Refazendo o percurso: o projeto Pós-colonial

Abordagens post-colonial ou post-colonialidade vem questionando estudiosos nas áreas das ciências humanas, onde várias vertentes tem questionado a expansão e a hegemonia da episteme ocidental, questionando balizas de estudos históricos e literários eurocentrados desde a década de 1980[11].

Já na década de 1970, os estudos culturais britânicos traziam críticas pesadas, advogando uma “indisciplina acadêmica”, dando inicio a construção de perspectivas teórico-metodologica em torno da cultura ou diferença colonial, percebida como modos de transgressão, de viver e pensar, organicamente a v ida material e espiritual.

Na visão de Stuart Hall[12], essas lutas culturais nutriram-se da “viragem linguistica”, com estudos que priorizavam as linguagens simbólicas, metafóricas, seguida de uma “viragem teórica”, que questiona profundamente a hegemonia do Ocidente nas mais diversas dimensões social, política, cultural e religiosa.

Intelectuais do terceiro mundo com suas pesquisas e reflexões priorizavam a diferença e a alteridade, resgatando memórias, histórias sobre a “herança colonial”e a “fratura social”.

Os estudos subalternos da India, do coletivo modernidade/colonialidade do Caribe e da América Latina reforçam a dinâmica critica iniciada pelos estudos culturais. Estes questionamentos, na expressão de Antonacci, voltaram atenções à expansão colonial desde o coração de disciplinas conformadoras da modernidade ocidental: filosofia,  história e literatura.  Áreas que marcam a cultura do Ocidente e estão atravessadas por um passado racista e colonialista, o qual, longe de haver sido superado, recria-se na cultura contemporânea, com racismos culturais e a “violência epistêmica”.( ANTONACCI, 2015, p. 2).

Na América Latina, a colonialidade, isto é, a permanência da mentalidade colonial após o termino do colonialismo, vem sendo trabalhada diuturnamente por intelectuais como Enrique Dussel, Anibal Quijano, Santigo Castro-Gomes, Catherine Wash,Walter Mignolo, Nelson Maldonado-Torres,Arthurp Escobar e Ramón Grosfoguel.     Para estes autores, colonialidade se apresenta como a face perversa da modernidade. Entre os textos inspiradores desses estudos, encontramos os de Aimé Cesaire, Discurso sobre o colonialismo (1955) e Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (1952) e Os condenados da Terra (1961)[13]. Para Antonacci, estes autores,

Sem deterem-se na crítica à modernidade/colonialidade, ultrapassam seu pretenso universalismo na escuta/visualidadedo que designam diferença colonial, desde emergência de “subjetividades” com que foram vividas a conquista e a colonização das Américas, o tráfico negreiro, o escravismo, a colonialidade de seres, saberes e poderes. Em atenção crítica a transgressões culturais, em abertura a pensamentos de rastro/residuos(Glissant) ou pensamento fronteiriço, em “dupla crítica”a bases epistemológicas Ocidentais e percalços a pensares locais, investem em outras estruturas cognitivas e viveres que ultrapassam subalternidadesvigentes (ANTONACCI,2015, p.3).

Gradualmente, uma outra geografia da razão vem sendo construída, vizibilizada num projeto epistemico-politico e ético. A obra de Ruth Guimarães traz no seu bojo sementes de uma dinâmica pós-colonial.

A obra de Ruth Guimarães à luz da Teoria Pós-colonial

Quando se olha por dentro da literatura dos povos marcados pelo colonialismo constata-se a força das estratégias colonizadoras que impuseram seu canone literário, imposição que passa pelo desprezo de qualquer expressão cultural indígena, afro-brasileira ou popular.

No Brasil, ainda está por surgir uma literatura desvinculada do padrão eurocentrico, questionadora de pressupostos do padrão eurocentrista. Na verdade, pouca descolonização ocorreu no âmbito literário. O satus canônico das literaturas europeias deitou raizes profundas no país.

Examinando com atenção a obra de Ruth Guimarães pode-se constatar a presença seminal de uma dinâmica descolonial, expressa no diálogo sempre negado pela colonização com a cultura periférica. Antonio Candido no prefácio à segunda edição de Água Funda escreve: “é bom insistir no fato de Ruth Guimarães ser não apenas uma escritora bem dotada para a ficção, mas uma autoridade nos estudos da cultura popular, cultura que em Água Funda constitui verdadeira rede de sustentação “(CANDIDO, 2014,p. 18). Diálogo que insere Água Funda no contexto da literatura brasileira como representante de uma identidade local e regional.

Ruth Guimarães em Água Funda concebe como nos diz Oliveira:

Um universo historicamente constituido, Água Funda promove, por meio de uma instituição discursiva, a elucidação da identidade do homem rural valeparaibano, revelando amplamente o modo de ser, de viver, de pensar e de falar dessa comunicade ficcional, o que reforça as relações entre literatura e sociedade, como apontado por Antonio Candido ( OLIVEIRA, 2014, p.20).

Portanto, estamos diante de uma perspectiva marcadamente descolonial.  O diálogo com a cultura local, com a intenção de captar a identidade cultural do caipira enuncia outra geografia da razão ao partir do corpo-politico local. Ela procura descobrir as raizes da condição humana no dia-a-dia da gente mais simples.

José Paulo Paes, ao apresentar aos leitores de O Estado de São Paulo, em 15 de setembro de 1996, o livro Contos de cidadezinha[14], aponta o gosto coloquial e a capacidade de Ruth Guimarães de,

Descobrir, no dia-a-dia da gente mais simples, as raízes da condição humana.

Descoberta a que acedemos por via de uma escrita intensa, que se vale da dialogação captada por assim dizer ao vivo e do discurso indireto empaticamente sintonizado com a interioridade dos protagonistas para, em poucos traços, pôr-nos diante dos olhos do espírito a humanidade de cada um.(PAES, 2014, p.64).

Subjetividade sempre negada pelos processos colonizadores e que Ruth Guimarães cuidou sempre de preservar e dar a conhecer na sua produção literária. Opção confirmada uma vez mais no prefácio, que escreveu para Lendas e Fábula do Brasil, quando apresenta os critérios para selecionar os contos:

Esse será o primeiro critério: a coisa comprovadamente nossa. E, para que se possa responder pela pureza da colheita, mister foi buscá-la no meio rural, nas cidades pequenas, entre gente analfabeta, que jamais leu um livro, que jamais ouviu falar de livro a não ser da Sagrada Escritura e de São Cipriano (Guimarães, 2014, p.82).

Neste livro, nas suas cem páginas, relata para os leitores, causos de mutirão, de acochar fumo, de pessegada e goiabada, de noites de São João e São Pedro e causos de quentar-fogo-de-noite-na-rua-de-Baixo. A escolha dos causos deixa transparecer a sensibilidade da pesquisadora por um lado, por outro a sua deliberada intenção de acolher toda a sabedoria e visão de mundo, presente nos causos.

Ivan Vilela, estudioso da cultura popular e da música, nos lembra que:

o caipira e seu saber tornaram-se periféricos nos modos de produção urbana-industrial. O olhar periférico atribuido ao caipira se transferiu a seus atributos. Sua produção cultural foi tratada durantes décadas como algo imperfeito, simples demais (VILELA,2015, p.74).

Ruth Guimarães, como Ivan Vilela, via na década de 1940 o caipira como alguém que resistia tenazmente uma onda de desenraizamento, que atingia a população brasileira do interior e das pequenas cidades.

Ela costumava definir-se como mulher, pobre, negra e caipira. Heloneide Studart, ao entrevistá-la  para a revista Manchete , em 1982, entre outras coisas perguntou:

-Manchete-Há uma pergunta que lhe quero fazer, pois acho você a  pessoa apropriada para respondê-la. Em nosso pais louva-se muito a mulata, a mulata é a tal, há versos e sambas cantando a mestiça. Isso não será mais uma conotação depreciativa, reduzindo a bela mulher escura a um papel simplesmene sexual? Não será uma reminiscência da senzala que a negra estava aí para isso mesmo?

-Ruth- Esse louvor gratuito à mulata é coisa do Rio, de Copacabana, divertimento de intelectuais. A realidade é outra.Em qualquer ponto do país, a mulata é vítima do sistema duas vezes: como mulher e como negra. É comum que ela procure sair do seu dilema através do casamento- difícil- ou através de soluções fáceis e tristes (STUDART,2014, p.49)

Na sua resposta, aponta para a presença do racismo na sociedade brasileira, ela tem consciência do quanto o racismo está entranhado no solo pátrio. Ao longo da entrevista deixa claro que um dos caminhos para superá-lo é a o da educação. “É um problema de educação”. Educação abraçada por ela como mãe, escritora e professora.

Ruth Guimarães sabe como é importante preservar a tradição e a memória do povo, memória esta conservada nas falas e nos corpos. As tradições caipiras são cantadas, dançadas, declamadas e principalmente vividas. O direito à memória e ao legado do patrimônio cultural produzido por saberes silenciados, sempre esteve presente em tudo que realizou ao longo da vida. No contato com o povo, levou adiante esta luta chamando atenção para vida caipira, desvelando outro mundo, outras formas de sentir, ser, viver, fazer, realizar e construir.

         Conclusão

Ao adotar como locus de enunciação o espaço regional do vale paraibano e ocupar-se em perceber lendas, provérbios, ditados, hábitos, crenças, mito, linguagem, metáforas ligadas ao cotidiano, Ruth Guimarães resgata traços da identidade caipira, revelando o modo de ser, de viver e de pensar de homens e mulheres do povo. Na contra-mão do “ preconceito linguístico como instrumento de dominação,[que] no caso dos caipiras, aliou-se à depreciação sócio-histórica advinda das mudanças ocorridas em São Paulo no século XIX  e posteriormente no êxodo rural”(VILELA, 2013,  p.84).

Sua produção literária, se olhada no conjunto deixa transparecer a idéia de “interpenetração de civilizações”, ao mostrar como a população brasileira foi capaz de apropriar-se, incorporar e ressignificar saberes e fazeres dos colonizadores. Em Lendas e Fábulas do Brasil, nos relembra a ancianeidade das estórias, que “vem de longe, mas adotadas e adaptadas são brasileiras, genuínas espontâneas”(GUIMARÃES, 2014, p.84).

Ruth Guimarães, ao reexaminar o problema da presença da cultura caipira em relação à “cultura brasileira”, produz uma obra extremamente aberta, em que o riquíssimo material empírico por ela coletado oferece subsídios para descolonizar o ensino/aprendizagem de História do Brasil[15].

Ao aprofundar na produção critica de sua obra, percebe-se logo que para ela a literatura era uma experiência de vida. Ela que nas suas obras deu voz e vez ao mundo marginalizado do homem e da mulher simples, tem muito a nos dizer nos dias de hoje.

Finalizo com um dos seus versos,

Não oponhas ao meu grito

O desdém infinito dos astros impassíveis.

Quem entende o que escreveste com as estrelas?

De braços abertos, na cruz.dos quatro caminhos,

eu também sou uma cruz, traçada no chão duro

com carvão.

Como se fosse a Tua sombra,

estendida no chão.

Esse gesto agoniado de abrir os braços

para o infinito ou para o amor,

gesto de cruz que é Teu e meu

nos aproxima, meu Senhor!

Referências Bibliográficas

ANTONACCI,M.A.História e cultura em Estudos Post-Coloniais. Apostilha, 2015.

BOTELHO, J.M.G. Ruth Guimarães, da palavra franca, p. 6-8.

———————-. A missão de Ruth Guimarães, p.28-29.

GUIMARÃES, R. Entardeceres, p.31-32.

———————.Anoitecer, p.33-34.

———————.Literatura Infantil. Prefácio Lendas e Fábulas do Brasil, p.82-85.

JORNAL DE SÃO PAULO.  De menina espeloteada e petulante à romancista benquista pelo público e elogiada pela crítica. Domingo, 22 de setembro de 1946, p.9-11.

JORNAL O ESCRITOR. Ruth Guimarães: leitura e brasilidade, p. 106-109.

OLIVEIRA, A.P.M.C.de. Um mergulho em Água Funda e suas distintas vertentes, p.19-22.

PAES, J.P. Uma contista do interior revive sua fala, p.63-64.

SÁ, O. de. A “bruxa” de Cachoeira Paulista, p.122-123.

STUDART, H. entrevista com Ruth Guimarães: “Não é fácil ser mulata”, p.47-49.

VILELA,I. Cantando a própria História. Música caipira e enraizamento. São Paulo: Edusp,2013.

*Comunicaçào feita no 28 Congresso Internacional da SOTER- Religião e Espaço Público: cenários contemporâneos-2015.  Nos Anais do Congresso encontra-se  uma versão reduzida desta Comunicação.

[1] Professor Titular PUCSP, Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião. E-mail brbrito@uol.com.br

[2] O Centro está localizado em Lorena (SP). Agradeço a amiga Olga de Sé, escritora e educadora que me envia religiosamente a Revista Ângulo. Todo material de pesquisa utilizado nesta comunicação foi extraído do número dedicado a Ruth Guimarães. Nas Referências Bibliográficas, indicaremos o nome do autor do artigo, o titulo e as páginas da Revista Ângulo 137, Abril- Junho de 2014.

[3] “ Entre 1963  e 1968, convidada por Emir Macedo Nogueira, então editor-chefe da Folha de S. Paulo, Ruth escreveu crônicas semanais, com Cecília Meirelles, Pe.Vasconcelos e Carlos Heitor Cony… No total, foram  quase 300 publicações, com o resgate de tipos populares, usos e costumes, flagrantes do cotidiano de vários lugares do Brasil” (2014, p.95)

[4] GUIMARÃES , Ruth. Água funda.Porto Alegre: Edição da Livraria Globo, 1946.

[5] GUIMARÃES,Ruth. Filhos do medo. Porto Alegre: Editora Globo, 1950.

[6] GUIMARÃES, Ruth. Lendas e Fábulas do Brasil. São Paulo: Editora Cultrix, 1972; História de Onça. São Bernardo do Campo: Usina de Idéias, 2008; Histórias de Jabuti. São Bernardo do Campo: Usina de Idéias, 2008; Calidoscópio- a saga de Pedro Malazarte. São José dos Campos: JAC Editora, 2006.

[7] GUIMARÃES, Ruth. Histórias Fascinantes, de Honoré de Balzac.( Seleção, tradução e prefácio). São Paulo:Editora Cultrix, 1960; História de Alphose Daudet (Seleção, prefácio). Tradução de Ruth Guimarães e Rolando Roque da Silva. São Paulo: Editora Cultrix, 1986; Os mais brilhantes contos de Dostoievski ( Introdução, seleção e tradução). Rio de Janeiro: Edições  Ouro, 1966

[8] GUIMARÃES, Ruth. O asno de Ouro de Apuleo.  Rio de Janeiro: Edições Ouro.s/d.

[9] GUIMARÃES, Ruth. Dicionário de Mitologia Grega. São Paulo: Editora Cultrix, 1972.

[10] GLISSANT, É. Introdução à poética da diversidade. Juiz de Fora: EDUFJF,2005.

[11] A bibliografia é ampla, apresento alguns textos de Walter Mignolo que tem contribuído muito na construção de uma epistemologia renovada. Cf. MIGNOLO, W. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistemica. In: SANTOS, B. de S. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo; Cortez, 2005; “A colonialidade de cabo a rabo”. In: LANDER, E.(org.).A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005; “ El giro gnoseológico decolonial”. In:CÉSAIRE, A.(org.) Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal Ediciones, 2006a; “La descolonización del ser y del saber”. In: SCHIWY,F.; MALDONADO-TORRES,N.;MIGNOLO,W. Des-colonialidad del ser e del saber. Buenos Aires: Edicones del Signo, 2006b; “ El desprendimiento: prensamento critico y giro descolonial”. In: SCHIWY,F.; MALDONADO-TORRES,N.;MIGNOLO,W. Des-colonialidad del ser e del saber. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2006c

[12] Cf. HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003.

[13]  CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Porto: Editora Poveira,1971 [1955]; FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edulfa, 2008 [1952]; Os condenados da Terra .Civilização Brasileira,1968 [1961].

[14] GUIMARÃES, Ruth. Contos de cidadezinha. Lorena: Centro Cultural Teresa d’ Ávila,1996.

[15] Sua pesquisa oferece subsídios para dinamizar o potencial pedagógico descolonial das Leis 10.639 e 11.645.

Das alegrias de se trabalhar com livros! – Publicação de Bruna Xavier Martins, da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin

Primeira edição de Água Funda - Ruth Guimarães

Primeira edição de Água Funda – Ruth Guimarães

Das alegrias de se trabalhar com livros! Em mãos, seguro a primeira edição do romance Água Funda, de 1946, livro que despontou Ruth Guimarães (1920-2014) como a primeira escritora negra brasileira de projeção nacional. Nota-se que até então mal se tinha conhecimento da obra de Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula. Em 21 de março de 2023, eu e meus colegas fomos recebidos calorosamente pelo jornalista e editor Joaquim Maria Botelho, filho de Ruth, que nos mostrou essa e outras preciosidades. Lançado junto com Sagarana, dividindo mesa com Guimarães Rosa, Água Funda foi o único romance completo de Ruth, de grande sucesso de crítica. Mas ela nunca parou de escrever em outros gêneros: foram inúmeros contos; diversas recolhas de histórias orais da população negra e de povos originários, trabalhando incansavelmente com os chamados “estudos folcloristas” – aprendiz que era de Mário de Andrade -; e ainda traduziu do francês autores como Balzac e Dostoiévski, além de obras escritas em latim. Ouvimos muitas histórias dessa mãe trabalhadora de Joaquim, quem a ajudava pesquisando para os verbetes de seu dicionário de mitologia grega, entre outras tarefas. Sigo encantada pela escrita de Ruth e por sua trajetória. Fico feliz que novas pesquisas estão surgindo sobre sua obra, assim como quando ouvi seu nome pela primeira vez via dos estudos e palestras da Fernanda Miranda sobre corpus de romances de autoria negra feminina na literatura brasileira, sua tese de doutorado pela USP. Água Funda entrará na lista da Fuvest 2025, incentivando que mais pessoas o conheçam e divulguem seu legado. Em breve, poderão conferir esta raridade em uma exposição na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, na USP. Fiquem de olho! Ah, e o Joaquim generosamente doou uma dezena de livros reeditados da Ruth que estarão disponíveis para consulta pelo público leitor. * Água Funda foi reeditado em 2018 pela Editora 34!

Nara Vidal fala sobre Ruth Guimarães

O sexto episódio de “O mundo não está à tona” do Espaço Desenredo (@desenredo.narrativas) traz a escritora Nara Vidal falando sobre a escritora Ruth Guimarães. Nara também reflete sobre a escrita e a leitura de mulheres: “Por que cargas d’água essas mulheres não tiveram a mesma possibilidade e oportunidade de mostrar o trabalho? Do trabalho delas serem falados, comentados, discutidos, estudados. Isso para mim é uma questão por si só muito complexa, muito problemática e que de fato merece esta atenção, esta reflexão.” Venha ver e ouvir uma escritora contemporânea lendo e falando sobre uma das escritoras que vieram antes de nós e fizeram tanto.

Assista o vídeo abaixo ou clique no link: https://youtu.be/00DI7vBgjhI

Ruth citada no Estadão de 25/03/2023

Antonio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras, reverenciou Ruth Guimarães em entrevista

Antonio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras

Antonio Carlos Secchin, da Academia Brasileira de Letras

“Ainda no Século XX os negros têm muita dificuldade. A Ruth Guimarães, por exemplo, é uma autora que ainda é desconhecida de certa forma.
Desconhecida… Acho uma escritora extraordinária. É uma mulher com interesse em folclore e outras áreas, uma produção muito ampla e valiosa, que praticamente ainda não foi redescoberta.”
Leia a entrevista na íntegra neste link:

https://www.printfriendly.com/p/g/gjWJ4C

“Água Funda” entre os 200 livros mais importantes para pensar o Brasil

A Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da USP, promoveu a exposição “200 livros para pensar o Brasil”, em setembro de 2022, para celebrar os 200 anos de independência. Os curadores selecionaram os livros considerados mais relevantes para que se conheça a identidade nacional por meio da literatura, no período desde 1822.
Ruth GuimarãesO próximo passo será inaugurar, em maio de 2023, uma exposição com parte da obra de Ruth Guimarães. A informação foi passada por Franklin Cordeiro Pontes, um dos idealizadores, que visitou a casa de Joaquim Maria Botelho para recolher, por empréstimo, primeiras edições de obras da escritora cachoeirense.

O homenageado da 3a edição do concurso de fotografia do INRG: Motoaki Yasumura

Hoje as pessoas não podem entender o trabalho de um fotógrafo, porque as técnicas são bem diferentes. É tudo muito simples na era digital, podemos ver o resultado imediatamente após o disparo. A máquina regula a cor, o foco, o brilho, a luz, por muito pouco não transforma a imagem. Aliás, transforma, sim, se usarmos os recursos que existem para isso.
O fotógrafo era um verdadeiro artesão, um trabalhador braçal. Precisava correr atrás da boa imagem. Estar no lugar certo, na hora exata, porque não se pode captar o momento passado. Ter bons reflexos, ficar atento eram ferramentas fundamentais, não era possível fazer várias fotos em poucos segundos. Se o filme acabava, seria necessário tirar o filme da máquina e colocar outro, o que levava alguns minutos – fim do evento. Poderíamos perder o armistício da guerra mundial!
Em Cachoeira Paulista tínhamos alguns bons nomes na fotografia: Roberto, Euzébio, Zizinho, Motoaki. Estes dois foram parceiros algumas vezes fotografando casórios. O Motoaki tirou fotos 3×4 da cidade inteira! Seu estúdio era pequeno, mas nele quase todo o mundo entrou. Na parede ao lado da porta de entrada ele expunha uma coleção de clientes e todos que passavam não resistiam, precisavam entrar e tentar identificar fulano, cicrano e beltrano. Aquele estudou comigo, esse mora na rua da Raia, aquele outro não sei quem é, mas tem uma cara engraçada. O Motoaki, atrás do balcão, tinha sempre um jeito sorridente, de quem estava se divertindo com as observações.
Ir ao Motoaki era quase como ir ao dentista: uma vez por ano. Era foto para a carteira de trabalho, para o passaporte, para a carteirinha do clube. E em dois cliques estava pronto. Sempre muitoisolícito e sorridente. Era um lugar onde eu me sentia em casa, quase dava para tirar os sapatos e ficar à vontade.
Ele se aposentou talvez devido à concorrência, talvez por não querer começar tudo de novo, se inteirando sobre as máquinas digitais, esse novo aparelho cheio de botões para controlar, talvez por ambos os motivos.

Fotógrafo Motoaki

O Fotógrafo Motoaki em seu estúdio – Foto: Pino Rossi

Eu só sei que esta impessoalidade toda de hoje me incomoda, sinto a falta dos retratos na parede e da cara boa do Motoaki me recepcionando na sua lojinha.
Nós precisamos que os negócios existam, mas é muito melhor quando eles vêm acompanhados de coração.

Ruth, a tradutora de clássicos

O historiador Dennys Silva-Reis, no seu canal de YouTube, faz um apanhado da produção de Ruth Guimarães, com destaque para a tradução direta do latim do “Asno de Ouro”, de Apuleio.
O programa faz parte da série Tradutrix, que aborda mulheres que trabalharam para divulgar a literatura de outros idiomas para o Brasil.

Para assistir, clique no link abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=bveaOHz4l4U

Dennys Silva-Reis - Instituto Ruth Guimarães

Historiador Dennys Silva-Reis

Professor Adjunto de Literatura de Expressão Francesa na Universidade Federal do Acre (UFAC), Doutor em Literatura (POSLIT/UnB) e Mestre em Estudos de Tradução (POSTRAD/UnB) pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Letras-Tradução e licenciado em Língua Francesa e respectivas literaturas pela mesma universidade (UnB). Atua, principalmente, nas áreas de Estudos Interartes, Estudos da Tradução (notadamente, Historiografia, Identidades e o par de línguas francês-português), Literatura Francófona (em particular, Literatura da Guiana Francesa e a obra do escritor Victor Hugo). Tem diversos textos (artigos, capítulos de livros, resenhas, entrevistas e traduções) publicados no Brasil e no exterior. Escreve no blog “Historiografia da Tradução no Brasil” (http://historiografiadatraducaobr.blogspot.com.br). É organizador das seguintes obras: junto com Sidney Barbosa, “Literatura e Outras Artes na América Latina” (2019); em co-organização com Kátia Hanna, a obra “A tradução de quadrinhos no Brasil : princípios, práticas e perspectivas” (2020), e o livro “Poéticas e políticas do feminino na literatura”, em co-autoria com Anselmo Alós e Cinara Ferreira. Participa como pesquisador dos grupos de pesquisa: Grupo de Estudos em Literatura e Estudos Comparados (UFAC), Grupo de Pesquisa em Poéticas Moderna e Contemporânea (GPPMC) (UNIR), LiterArtes (UNB) e Grupo de pesquisa A tradução como ferramenta de resistência e inclusão (UNB). Desde de 2013, faz parte da Associação Brasileira de Literatura Comparada (ABRALIC) e da Associação Brasileira de Pesquisadores em Tradução (ABRAPT). É professor credenciado do Mestrado Acadêmico em Estudos Literários (MEL/UNIR) e do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (PPGLEN/UFRJ). Informações coletadas do Lattes em 20/03/2023

ÁGUA FUNDA | Ruth Guimarães | FUVEST

A professora Isa Novas comenta no Youtube o livro “Água Funda”, de Ruth Guimarães, para estudantes que vão prestar o vestibular da Fuvest.

“Água funda” foi o primeiro romance de Ruth Guimarães, obra do Modernismo brasileiro, já confirmado para a lista de leitura obrigatória do vestibular da Fuvest (a partir de 2025). Livro: Água Funda Escritora: Ruth Guimarães (1920-2014) Editora: Editora 34 Prefácio: Antônio Cândido Escola literária: Modernismo Literatura brasileira.

https://www.seer.ufal.br/index.php/revistaleitura/article/view/13223/9913

Sobre “A instabilidade na crítica do romance Água Funda, de Ruth Guimarães” artigo de Cecilia Furquim

Na Revista ABRALIC – Associação Brasileira de Literatura Comparada, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, edição de 2021, a doutoranda em Letras, pela USP, Cecília Silva Furquim Marinho publicou robusta análise da vida e obra de Ruth Guimarães, a partir da análise que denominou de “A instabilidade na crítica do romance Água Funda, de Ruth Guimarães”.

Cecília Silva Furquim Marinho - Instituto Ruth Guimarães

Cecília Silva Furquim Marinho

Histórias da literatura

Histórias da literatura

“Depois que minha pesquisa se iniciou, muitos avanços se deram na revalorização de Água Funda. Em 2018, uma terceira edição, muito bem cuidada, foi lançada pela Editora 34, mantendo o prefácio de Cândido, e inserindo no posfácio alguns outros enxertos da crítica, aqui analisada. Em 2019 foi defendida a primeira tese de doutorado sobre romancistas negras brasileiras, pela Universidade de São Paulo, na Área de Estudos Comparados. Ela tem em seu corpus um apanhado de oito romances de mulheres negras brasileiras, e Água Funda compõe o conteúdo de análise. Esse estudo foi, no mesmo ano, lançado também em formato de livro pela editora Malê e deu a sua pesquisadora, Fernanda Miranda, o Prêmio Capes de tese 2020, na área de Linguística e Literatura. Apesar da pandemia, esse ano, que é o centenário de nascimento da escritora, trouxe outras diversas conquistas para o romance e sua criadora. Além de dois livros póstumos, Contos Negros e Contos Índios e uma segunda edição de seu Os Filhos do Medo, estudo folclórico de 1950, muitos encontros virtuais acolheram estudiosos para debater a sua obra e diversos artigos sobre ela estamparam jornais eletrônicos ou físicos, como: Revista Galileu, Quatro Cinco Um, Revista Cult, BBC News Brasil, Folha Ilustrada, Folha Uol, entre outras.”

A íntegra do artigo está entre as páginas 102 e 125 do link  https://www.ufrgs.br/ppgletras/wp-content/uploads/2021/10/ABRALIC-Eixo-5-Volume-1-Historias-da-literatura-v.-1.pdf