O romance Água funda, de Ruth Guimarães
Como cheguei a Água funda?
Li Água funda (1946) pela primeira vez em 2020, no auge da pandemia. Estava interessada em me aprofundar na prosa de autoria feminina negra e li vários romances brasileiros com esse recorte, muito impulsionada pela tese de doutoramento de Fernanda R. Miranda, publicada pela Editora Malê em 2019, intitulada Silêncios prescritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006). Neste riquíssimo e pertinente trabalho, vencedor do Prêmio Capes de Tese de 2020 na área de Linguística e Literatura, Miranda faz uma série de reflexões a partir do fato da produção poética ser muito maior do que romanesca quando se fala em literatura de autoria negra, dado que justifica, inclusive, a incursão da autora em obras deste último gênero. Trata-se de uma discussão cujos desdobramentos ressoam em vários fatores, tais como: o histórico e as circunstâncias do aparecimento e da consolidação de cada um desses gêneros no país, quaisquer sejam as suas autorias; os impasses colocados ao negro e ao seu fazer literário, sobretudo na ficção; o investimento ou não da crítica em produções de autoria negra, bem como a sua recepção às mesmas; e, por fim, a discussão sobre o que sustenta o conceito de literatura negra.
Além de me fazer conhecer outras romancistas negras brasileiras, no que tange à Água funda, a tese de Miranda foi primordial para despertar o meu interesse crítico, principalmente ao analisar a presença do povo no discurso narrativo do romance, ponto fulcral da minha atual pesquisa. Além disso, Miranda também reflete sobre dinâmicas e impasses da nação, advindos de fatores raciais, sociais e de gênero.
Em resumo, depois desse encontro propiciado pelo trabalho de Miranda, reli o romance, pontuando o que queria analisar e, por fim, escrevi o projeto de mestrado. Ingresso no Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira do DLCV-USP em 2022, onde estou até hoje, sob orientação da Profa. Dra. Simone Rossinetti Rufinoni.
Qual é o meu interesse crítico?
Apesar da recepção calorosa na época de seu lançamento, e do rápido esgotamento do número de exemplares, Água funda ainda possui escassa fortuna crítica. Tal cenário vislumbra uma mudança, sobretudo depois da publicação da 3ª edição do romance em 2018, pela Editora 34, mas não só: a obra é leitura obrigatória da FUVEST 2025 e 2026. Na verdade, o alcance cada vez maior que a obra de Ruth Guimarães tem tido muito se deve à fundação do Instituto Ruth Guimarães, em 2019, gerido pelos seus filhos, Júnia Botelho e Joaquim Maria Botelho. Além de divulgar as pesquisas em torno da escritora e intelectual valeparaibana, a instituição constantemente tem negociado reedições de títulos antigos e lançamentos de novos, promovendo cursos, palestras e encontros sobre a obra da autora, possibilitando o conhecimento das outras facetas de Ruth: a poeta, a tradutora, a folclorista, a cronista, a contista, a mãe, a bruxa, etc. No final de 2023, por exemplo, participei do lançamento da coletânea de crônicas Marinheira no mundo, publicado pela Primavera Editorial.
Além das resenhas da época de lançamento, destacando-se a de Antônio Candido, antes da tese de Miranda, as principais contribuições (e as que eu mais utilizo na minha pesquisa) aos estudos sobre Água funda são: a dissertação de Ana Paula Marques Cianni de Oliveira, intitulada “Um mergulho em Água funda e suas distintas vertentes” (2011); o ensaio “”Récit et Prophétie chez Ruth Guimarães” (2004), de Alckmar Luiz dos Santos; o artigo “Vestígios da tragédia grega” (2018), de Jeane Lucas. Atualmente, deve haver outros pesquisadores que colaboram com os estudos ruthianos – se me permitem o termo -, sendo do meu conhecimento principalmente Cecília Silva Furquim Marinho (USP), Arman Neto (UFRJ) e Sérgio Carvalho Portilho (Universidade Federal de Viçosa).
Em relação às motivações advindas exclusivamente do texto literário, aquilo que mais me interessa é o discurso narrativo. O tom de prosa fiada, sugerindo uma narrativa aparentemente simples, camufla uma composição deliberadamente complexa, conforme pontua Candido no prefácio da 2ª edição, em 2003. A voz narrativa performa um contador de histórias tradicional: reúne as experiências e os saberes do coletivo, interpreta causos individuais e os passa adiante, de modo a perpetuar a história e a tradição de um lugar, tal qual um griot. Simultaneamente, apresenta traços de um narrador moderno, pois, apesar de sempre privilegiar as vozes do povo, faz a singularidade de sua voz ser notada, sobretudo quando: contesta o que o povo diz e refuta o jugo popular; tensiona o fatalismo caipira ao sugerir que, quiçá, o infortúnio de Sinhá Carolina não seja só fruto de suas próprias ações, da mesma forma que a errância de Joca já estava pré-determinada concomitantemente por circunstâncias místicas, sociais e históricas.
Contando a história de Olhos D’Água ao “moço”, é como se o narrador abrisse, ainda que desconfiadamente, o mundo fechado daquela comunidade rural a alguém “de fora”, de modo a encarnar um dilema imposto ao caipira do início do século XX: a necessidade de ajustar seus meios de subsistência, suas formas de organização e suas concepções de mundo ante a emergência do mundo urbanizado e moderno, que, por sua vez, traz uma novidade superficial, dado que apenas reconfigura estruturas antigas (escravocratas e patriarcais) de poder. É dessa condição que surgem as constantes oscilações do narrador diante das tragédias das personagens: “Pode ser e pode não ser” ou “Não sei… Deus sabe o que faz e a gente não sabe o que diz.”. E é isso que também esconde a metáfora que intitula o romance:
A gente passa nessa vida, como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada.
E quando alguém mexe com varejão no lodo e turva a correnteza, isso também não tem importância.
Água vem, água vai, fica tudo no mesmo outra vez.
Por fim, Água funda não é uma obra que repõe a famosa polarização entre a voz de quem narra (o erudito, o letrado, o “gramaticalmente” correto) e a voz de quem é narrado (o rústico, o iletrado, o que fala “errado”), frequente em outros escritores que se debruçaram sobre o caipira e sua cultura. A condição de caipira, bem como a sua reiteração ao longo da vida, distanciou Ruth Guimarães de um tratamento literário altamente romântico ou grosseiramente pitoresco. Aqui, a perspectiva caipira é posta em primeiro plano, ainda que tensionada. O drama de Joca é revestido de camadas que ultrapassam os estigmas da preguiça e da vagabundagem, infelizmente associados ao caipira até os dias de hoje. E, talvez mais importante, a fala caipira não se reduz a vocábulos isolados em um dicionário, ao contrário, é estilizada de forma a nos fazer enxergar a sua poeticidade.
Onde ler o que eu fiz até aqui?
Em outubro de 2023, fiz uma comunicação no 9º Seminário do Programa de Pós-graduação em Literatura Brasileira do DLCV-USP, intitulada “A figuração do destino em Água funda”, disponível na íntegra aqui. Já qualificada, estou na fase de escrever a dissertação final.
A seção “Regurgitando ideias” acaba de ser estreada com essa publicação sobre Água funda, e, certamente, não escapará de outras postagens sobre a vasta obra de Ruth Guimarães. Contudo, será um espaço para compartilhar reflexões sobre diversas literaturas, nacionais e internacionais, de agora ou de outrora. Não esqueçamos que, no que tange ao fazer literário, o importante é ruminar, regurgitar, ruminar, regurgitar…
Até breve!
Visite meu blog: https://ruminandoliteratura.wordpress.com/2024/05/03/regurgitando-ideias-o-romance-agua-funda-de-ruth-guimaraes/