Matinada

Instituto Ruth GuimarãesDe manhãzinha, alguma coisa estava acontecendo, no ar, nas ruas, no céu. O que havia? Qualquer coisa inusitada. Rumor em demasia. Um susto, parecia. Canto em cascata de duas qualidades diferentes de pios. De uma parte um susto, um protesto. Mas escutem: que barulho é esse?
Uma senhora matinada. Eram as maracanãs, uma espécie de papagainho sem graça, barulhenta gritadeira, madrugando para incomodar.
O céu está sereno, de um azul consolador.
De repente, não mais que de repente, a manhãzinha se encheu gloriosamente de uma barulhenta matinada.
– Que foi isso, gente? – indagou a Baita, saindo ao terreiro com as mãos em concha acima dos olhos.
As coisas estão mudadas, mas alguma coisa permanece. As coisas estavam muito mudadas. A luz, as sombras. O beijo quente do calor na pele. Aquele revérbero, nos olhos, quando o rio desliza e caminha. Por exemplo, as flores se oferecem em beleza e são um chamado. Temos que contemplá-las. Temos que aprender que é primavera. O campo, o rio, o céu, sempre conseguem contar que ainda é primavera. E as maitacas, esse papagainho sem-vergonha, barulhento, pia, grita, martela, assobia, faz barulho com o bico e com as asas, não os deixa esquecer que é primavera. Grandes voos, rápidos, sincronizados, vão marcando o compasso, que são oito horas, que é manhã, que o dia é claro que o sol aquece, que a vida é uma dança de longos voos rápidos, que a vida é um voo. Que a vida é a vida. E que é música. E que são flores, são flores, são pios.
Foi a primavera, foram os pios. E que foi que perturbou a música dos maracanãs?
Geralmente sabemos as horas, quando o alegre bando desaparece para os lados da montanha, longe, tão distante que a gente acaba não sabendo para onde vão esses papagainhos…
Hoje eles se atrasaram, perderam a hora. Perderam o ritmo. Não nos ensinaram nada a propósito das floradas, nem do tempo, nem da vida. Nem do espaço que é preciso medir. Nem do trabalho de todos os dias, que é preciso reafirmar que é belo. Hoje as maracanãs vão sem festa nem alegria. Música não há, mas um excesso de pios. Perderam até a hora da partida, que de costume acontece, ritmadamente. Se bem que em grandes gritos, que papagaio é ave sem medida nem música, o grupo é homogêneo. Cada um sabe o tom em que deve gritar quando deve gritar e por que deve gritar. E quando deve se perder no azul, longe, alto, esplendorosamente.
Entretanto não sabemos a razão da perturbadora quebra de ritmo desses pássaros tão acostumados a um horário igual, todos os dias de todas as semanas de todos os meses, e que não perdem a hora nunca, e têm um reloginho nas asas, nos pios, e preenchem o seu horário como se Deus estivesse marcando para eles.
E hoje estão desafinados, fora do ritmo e fora do horário… Que houve, afinal?
E então vejo, não mais que de repente, que meninos e adultos não chegando para o botequim mais freqüentado pelo pessoal dos passarinhos de gaiola. E entram muitos e saem, e falam em altas vozes e começa a se delinearem pios sincopados, suaves, parece que uns respondendo a outros e são teimosos, rolam como cascatas, como escachoar de notas musicais, vão e vêm e recomeçam, são macios, acariciantes, também recomeçam em catadupa, mas sem aspereza. E, no entanto, sentimos que notas macias, repetidas, acariciantes, dezenas, centenas, nos fazem bem ao coração.
Que foi? Que houve?

– A senhora não sabe? – pergunta um pequeno ainda com uma gaiola na mão, onde um pássaro em que predomina o amarelo, se mata de tanto cantar. – Seu Tico da venda está fazendo um concurso de trinca-ferros.

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