O VALE DO PARAÍBA EM FORMA DE PEPITAS

Instituto Ruth GuimarãesRuth Guimarães vive dizendo que quer arranjar tempo para se dedicar à bruxaria. Ela é uma bruxa assumida, daquelas que cozinham poções encantadas em caldeirões de ferro e panelas de pedra, que curam doenças com mezinhas, tinturas e extratos de ervas medicinais, das que arranjam situações ruins com simpatias, rezas fortes, palavras mágicas. Ruth vive sem tempo, mas já é uma bruxa – a bruxa boa que o folclore valeparaibano representa nas suas histórias como a simpática velhinha que ensina o caminho às crianças perdidas, que destrói com artimanhas geniais os monstros para deixar passar os príncipes que vão, por sua vez, salvar as princesas transformadas em rãs e as donzelas amaldiçoadas pelas feiticeiras malvadas.

É assim que Ruth quer continuar vivendo neste Vale do Paraíba que ela conta e reconta nos seus escritos deliciosos, pesquisados com o carinho de quem garimpa brilhantes. Na sua calma de cachoeirense, Ruth vem abrindo a alma, há 71 anos, para ser o relicário vivo das informações e da cultura valeparaibanas.

Ruth é simples como a sua gente. Humilde como suas histórias. Sábia como seus avós. Tem o do magistério e o pratica pelo exemplo, pelo comportamento, pela força de caráter. Foi menina moleque, de nadar em represa, enforcar aulas para ler romances, fazer traquinagens com os animais, correr, brincar, ser. Foi chefe de família muito moça, cuidando de três irmãos mais novos, mourejando o sustento de todos na São Paulo dos anos quarenta, acumulando dois e três trabalhos com o curso de Letras Clássicas da Universidade de São Paulo e um aprendizado de literatura com mestres como Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Amadeu Amaral. Cedo escreveu seu primeiro romance: “Água Funda”, um relato mais-que-perfeito do tipo popular valeparaibano. Guimarães Rosa lhe dedicou, depois de ler “Água Funda”, em manuscrito bilhete, o apelido de parenta minha. Foi cronista do jornal “Folha de São Paulo”, intercalando a coluna com Cecília Meirelles, Carlos Heitor Cony e Padre Vasconcelos. Comentou literatura no Rodapé Literário do jornal “O Estado de São Paulo”. Biografou personalidades como Cristo, Lesseps, Valdomiro Silveira e Buda. Estrela da Editora Cultrix com trabalhos de fôlego como o “Dicionário da Mitologia Grega”, “As Mães na Lenda e na História”, “Líderes Religiosos”, “Lendas e Fábulas do Brasil” e dezenas de outros. São mais de 40 trabalhos de pesquisa, pedaços de amor cada um deles. Traduções são muitas, do francês, espanhol, italiano, grego e latim. É de sua lavra a belíssima versão do “Asno de Ouro”, de Apuleio.

Ruth não para. Dorme quatro horas por noite e lê o que pode, tudo o que pode, o mais que pode. Tem um livro rascunhado, outro em produção e um terceiro na cabeça. Tem sido assim, nos últimos cinquenta anos. Que o digam seus milhares de alunos, que guardam dela ensinamentos de arte, de cultura, de vida. Ruth tem a qualidade singular de não passar despercebida. Ninguém consegue ficar indiferente ao seu jeito calmo e seguro. Muito menos à sua impressionante capacidade de trabalho. Um capinador seu empregado costumava se queixar dela, dizendo que ela era a pessoa que havia inventado o trabalho.

Cada trabalho seu tem um sentido pedagógico, exemplar, de resgate das coisas do povo. Sua melhor pesquisa, que chamou de “Filhos do Medo”, recupera todas as manifestações desse gigante da alma, no dizer de Mira Y Lopez. Gnomos, duendes, assombrações, sacis, mulas-sem-cabeça, diabos e demônios, envolvidos nas mais diversas e arrepiantes situações que o povo se encarrega de fazer perdurar na memória dos descendentes pelo raconto, pela tradição oral. Mestra Ruth é especialista em escrever como quem fala ao filho ou ao amigo, de forma singela e clara e simples e objetiva. E linda. E sábia. Seu jeito fácil de contar a maior das complexidades dá sabor de descoberta à leitura. Ela explica e a gente entende, como bem deve ser o repassar de informações. Neste ponto ela tangencia o jornalismo, e a ele presta inestimável serviço, completando aspectos que a notícia não apura. Aprendizado de muitas reportagens para a “Revista do Globo”, “Quatro Rodas”, jornal “Valeparaibano” e “Revista Realidade”.

E, pois, se a palavra como signo linguístico é arbitraria, a imagem tem por vezes que ser buscada para conotar a informação. E Ruth encontrou no primo José o parceiro e cúmplice para o trabalho de duas vidas. Casaram-se. Tiveram nove filhos. Mas continuam entregando à vida novos rebentos de criação, na forma de reportagens, pesquisas folclóricas, exposições, livros, aulas. São professores, os dois. São garimpeiros de brilhantes. José desenha com a luz, em preto e branco, e fotografa as belezas das gentes e das coisas das gentes. O casal revisita a dialética de texto e imagem de Roland Barthes, nessa parceria. E prossegue Amadeu Amaral, recupera Valdomiro Silveira, revive Mário de Andrade, resgata Guimarães Rosa.

Neste registro do cotidiano de alguns lugares do Vale do Paraíba, as leréias dos morros e das serras, o clima dos mercados, o rosto das pessoas, as mãos dos artesãos, os trabalhadores, os lugares e seus ocupantes. Ruth e José, mágicos, nos emprestam o sabor de rever coisas nossas, caipiras, ricas. Mais que mágicos, Ruth e José, meus pais, bruxos, amados, nos remetem à singeleza do que verdadeiramente é importante. Mais não lhes poderemos pedir.

Joaquim Maria Guimarães Botelho
In Crônicas Valeparaibanas, junho de 1991.

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