PREFÁCIO PARA UM LIVRO LIBERTADOR
Joaquim Maria Botelho
Este livro recupera manifestações do medo, um dos quatro gigantes da alma, no dizer de Mira y Lopes. Gnomos, duendes, assombrações, sacis, mulas sem cabeça, diabos e demônios, envolvidos nas mais diversas e arrepiantes situações que o povo se encarrega de fazer perdurar na memória dos descendentes pelo reconto, pela tradição oral.
A autora, Ruth Guimarães, recolheu histórias como quem garimpava ouro, no tempo em que ouro havia. Foi menina arteira, e convivia com as famílias dos peões e colonos da fazenda que o pai administrava, no sul de Minas Gerais, no início da década de 1920. Preferiu sempre a companhia dos mais pobres, dos desvalidos, dos esquecidos. Participou de suas vidas e de seus mistérios. Deles ouviu, com toda a atenção do mundo, os relatos de princesas e príncipes, das espertezas dos caboclos, das andanças de São Pedro pelo mundo, e das aventuras dos animais, do tempo em que os animais falavam.
Depois, regalou-se com as histórias contadas pela avó, ao pé da fogueira, nas noites límpidas de Cachoeira Paulista, no estado de São Paulo. A avó traduzia, para a neta menina, as tradições dos índios e dos negros. E Ruth ouviu, muito direitinho. Estremecia, a menina Ruth, dominada pelo medo ancestral dos demônios que nos perturbam a imaginação desde os tempos da caverna. Bem jovem, decidiu recontar essas histórias, primeiro porque precisava se libertar dos pavores da infância, e também porque estava segura de que tinha em mãos o tesouro da tradição oral do povo que ela amava.
Em uma de suas crônicas, publicada em 2007 no jornal ValeParaibano, de São José dos Campos, Ruth Guimarães disse isto, sobre a sua literatura:
“Ah! Eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim. Quem me dera escrevesse com suficiente profundeza, mas claramente e simplesmente, para ser entendida pelos simples e ser o porta-voz
dos seus anseios. Meu temário são as acontecências sem eco no mundo, mas que ajudam a explicar a vida e seus segredos, que talvez possam conter a alma imortal de cada um, seja do rústico, seja do letrado, com suas virtudes essenciais.”
Foi esse pensamento que a fez, em 1940, reunir num volume os racontos todos de diabo e de assombração, de duendes e pequenos demônios como o saci, a mula sem cabeça e o lobisomem, e foi procurar o grande Mário de Andrade. Escreveu uma carta ao mestre, sem grandes esperanças. Ela mesma conta, numa segunda carta ao autor de “Macunaíma”:
“Tinha eu vinte anos e pensava que sabia escrever. O mundo era inteirinho meu, largo, imenso, doação. E quanto me devia o mundo em troca, talvez, de quanto me fora retirado! Então escrevi a carta. Nela dava conta de algumas coisas que estava fazendo, que para mim, evidentemente, eram muito importantes. Devo lembrar-lhe de que se tratava de uma pesquisa sobre o Demônio, vivo e atuante no meu Vale do Paraíba. Trabalho sem técnica nenhuma. Acabei descobrindo que aquilo lá era folclore – e tal ciência me era desconhecida. Consultava livros misturando-os de maneira inconcebível. Havia os mestres, sim, havia, mas em meio de muito refugo. Da linguagem nem é bom falar. A sua resposta chegou dois dias depois, dois dias, não mais, escrita à mão, num cursivo elegante, correta, certinha, você me tratando de Senhora Dona. E ali vinha uma grande lição de honestidade intelectual: “Muita gente pensa” – dizia você – “que Folclore é pra gente se divertir.”
O pior é que estava mesmo me divertindo.
Fui à sua casa. Você me convidou. Leu o que eu escrevi e disse:
‘Essa linguagem…’”
Pois foi assim. Ruth, convidada, bateu à porta da casa na Rua Lopes Chaves, e Mário de Andrade a recebeu. Viu o trabalho, elogiou, corrigiu e orientou.
“Você tinha percebido, creio, que eu não era de muito falar. Reescrevi tudo. Alinhei considerações. Conduzi raciocínio. Terminava com uma pergunta: “Está claro o entrosamento de tradições?” Você leu tudo. Até o fim, atento, minucioso. Voltou a uma página já lida. Ergueu aqueles olhos castanhos, insondáveis. Confirmou, como se fosse o fim de uma conversa: “Está claro.”
Mário de Andrade não chegou a ver o livro pronto, porque morreu em 1945. Ruth preferiu dedicar mais tempo às correções sugeridas e acabou lançando, antes, o seu romance “Água Funda”, uma doce e trágica história de amor. O livro fez sucesso instantâneo, e chamou a atenção de Antonio Candido, Nelson Werneck Sodré e Guimarães Rosa, entre outros escritores e críticos que escreveram sobre ele. Naquele mesmo ano, Ruth iniciou o curso de Letras Clássicas da USP, em São Paulo, especializando-se em grego e latim, língua e literatura.
Em 1950, quando então lançou o livro “Filhos do Medo”, essa ampla pesquisa folclórica sobre o diabo e todas as manifestações demoníacas no imaginário do homem do Vale do Paraíba, a publicação lhe valeu um verbete na “Enciclópédie Française de la Pléiade”, publicada pela Editora Gallimard, sendo Ruth Guimarães a única escritora latino-americana a receber esta distinção.
O psiquiatra e intelectual Osório César, que fora casado com Tarsila do Amaral e que dirigiu por mais de 40 anos o Hospital Psiquiátrico Juqueri, em Franco da Rocha, escreveu sobre “Os Filhos do Medo”, no Jornal de Notícias, edição de 21/01/1951:
“Ruth Guimarães, autora de “Água Funda”, aparece agora com um novo livro – “Os Filhos do Medo”. Enquanto o primeiro é uma história singela e bem contada de certos aspectos da vida rural, o segundo é um livro de pesquisa folclórica nacional. Este livro de Ruth Guimarães já era esperado há algum tempo, pois sabíamos que estava colhendo dados sobre certas tradições do nosso povo. Ruth Guimarães conseguiu mostrar nesta obra que a Editora Globo acaba de editar, um estudo valioso e uma preciosa coleta de crendices e superstições. Entre nós, o material é grande e pouco estudado. Tempos atrás, sobre esse mesmo assunto, estudamos certas crenças das populações nordestinas sob o ponto de vista
psiquiátrico. “Os Filhos do Medo” vem proporcionar não somente uma fonte de consulta aos estudiosos do nosso folclore como também recolher nossas tradições populares, algumas tendentes a desaparecer, outras a se deturparem. A coleta feita foi criteriosa e bem orientada e, com este livro, vem a autora trazer importante contribuição ao folclore nacional.”
É preciso lembrar que as técnicas de citação bibliográfica vigentes em 1950 eram diferentes das utilizadas atualmente. Optamos por manter, neste texto atualizado, a forma original de citações da primeira edição – ao longo do texto, entre parênteses. Respeitamos, também, a inserção de referências bibliográficas das quais a autora certamente fez anotações, nas suas exaustivas leituras, esquecendo-se (não podemos ignorar que começou o livro quando contava apenas vinte anos de idade!) de registrar cidade, editora ou data de publicação. Embora tivéssemos buscado, em pesquisas na Internet, completar as informações da bibliografia utilizada, não logramos preencher algumas lacunas. Esse aspecto formal, porém, não invalida a qualidade da pesquisa realizada pela autora, e optamos por manter as referências, mesmo que incompletas, ao final desta edição.
Outrossim, respeitamos algumas correções registradas à mão, pela própria Ruth, numa leitura crítica que empreendeu sobre este “Os Filhos do Medo”, por volta do ano 2000.
“Água Funda” e “Os Filhos do Medo” foram os primeiros de mais de 50 livros,
de contos, pesquisas folclóricas, traduções do francês e do latim, e peças de teatro. Foi professora de grego, latim e língua portuguesa durante 35 anos em colégios estaduais e faculdades privadas. E ainda conseguiu tempo de fazer o curso de Dramaturgia e Crítica Alfredo Mesquita. De produzir reportagens para a Revista Quatro Rodas e Revista do Globo. E de escrever, por anos e anos, crônicas nos jornais Folha de S. Paulo e ValeParaibano. E de integrar o Conselho Estadual de Cultura, ao lado de Inezita Barroso. E de promover exposições de manifestações folclóricas.
Publicou o primeiro trabalho infantil em 1972, pela Editora Cultrix. Foi o livro “Lendas e Fábulas do Brasil”, com 24 histórias populares da região Sudeste do Brasil, que recontou deliciosamente. O livro foi reeditado pelo Círculo do Livro em 1989, na coleção Clássicos da Infância. Escreveu outros, como “Histórias de onça” e “Histórias de jabuti”. O livro mais recente foi “Calidoscópio – a saga de Pedro Malazartes”. A pesquisa, que tomou quase uma década, é uma espetacular coletânea de histórias populares (especialmente em cidades dos Estados de São Paulo e Minas Gerais e na região sul-fluminense) sobre esse herói pícaro brasileiro.
Em 2008, já aos 88 anos de idade, tornou-se a primeira escritora negra a integrar a Academia Paulista de Letras, ocupando a cadeira de número 22. Conviveu com escritores da maior importância no Brasil e no mundo, e que dedicaram a ela amizade e admiração: Lygia Fagundes Telles, Antonio Candido, Jorge Amado, Maurício de Sousa, Tatiana Belinky, Osman Lins, Marcos Rey e muitos outros.
Em uma crônica escrita pouco tempo depois da posse, intitulada “Entardeceres”, Ruth contou um pouco de sua própria história:
“Fui escolhida certamente pelo destino para escrever sobre velhice. de tal maneira se colocaram as condições para que eu soubesse mais do que cabalmente, intimamente, do que estou falando. Fiquei órfã de pai e de mãe muito cedo, e fui acolhida por meus avós maternos, já bem idosos, pois minha mãe era a caçula de onze filhos. Minha avó era uma curiboca, mestiça de preto, índio e português, e desde pequena eu a encontrei em pleno processo de envelhecimento, com uma orla azulada em torno dos olhos escuros, cabelos grisalhos, usava prótese dentaria, e sua cor era de um pardo acinzentado. Ela própria não sabia que idade tinha, cozinhava, lavava a toda a roupa da casa.
Eram muitas pessoas, incluindo cinco netos que lhe caíram em casa com a morte da filha, o mais novo com dois anos. Médico não entrava em nossa casa. A avó conseguia resolver todos os casos de acidentes da criançada, como pisar no prego e no caco de vidro, arrancar a unha do dedão quando se tropeçava, cair do cavalo que se montava em pelo, mordida de cachorro, sarna de carrapato, juçá por motivo de virar cambalhota nos montes de palha de arroz e outras desventuras nossas.
Quanto a ela, nunca a vi doente, de cama, embora tivesse reumatismo deformante nas duas mãos e nos braços, uma história antiga de doença cardíaca, e já estivesse muito desgastada, a pobre, de viver e sofrer. Mas ninguém podia dizer que tinha visto um só dia nhá Honória doente. Fazia longas caminhadas aos lugares de peregrinação, comia bem, dormia bem. Se o reumatismo a martirizava, nunca lhe ouvi um ai. Gostava de roupas de colorido vivo, estampadas com flores e era costume seu mexer as panelas cantando umas cantiguinhas da roça, daqueles velhos tempos. Contava longas histórias, em noites de frio, sentada num banco em redor do testo com brasas, os netos em volta. Tinha rígidos princípios e a mão leve no cocorote no alto da cabeça. E ágil na varada, quando necessário. A casa era limpa, clara, aberta, ninguém pedisse um prato de comida que não levasse. Éramos pobres, limpos, alegres. Sem queixumes.
Meu avô era português. Imigrou para o Brasil aos 14 anos, sozinho, recomendado ao capitão do navio que o trouxe. Aos 19 anos voltou à santa terrinha para se casar com a conversada que deixara lá. Trouxe-a consigo, ela morreu de febre amarela no Rio de Janeiro. Voltou para Minas, na Zona da Mata e ali encontrou aquela que foi a companheira até que a morte os separasse: minha avó Honória. Meio judeu pelo lado da mãe, era alto, magro, forte, rubicundo, trabalhou em serviços duríssimos, foi lenhador, taverneiro no Rio de Janeiro, depois guarda-chaves da Central do Brasil e seria ferroviário o resto da vida.
Não sei se consegui dar a ideia de que cresci entre velhos que não eram velhos no sentido pejorativo da palavra, mas gente que caminhava valentemente para o arremate dos males, sem os achaques, sem desfalecimentos e trabalhando sempre para cumprir até o fim sua tarefa”.
Ruth morreu em 21 de maio de 2014. Mas sua obra permanece. Cumpriu sua tarefa. E, como sua obra, Ruth é imortal. Assim como a senhora, protagonista de uma de suas histórias, que mandou construir uma igreja de pedra – pelos favores dos anjos, viveria tanto quanto durasse a igreja. A igreja que construiu está lá, firme. Ela também.
Nas histórias que Ruth contou, numa linguagem de avó para os netos, sua prosa é tão límpida e serena que parece que ouvimos o crepitar da madeira na fogueira do quintal.
Joaquim Maria Botelho é jornalista e escritor. Presidiu a UBE – União Brasileira de Escritores entre 2010 e 2015. É filho de Ruth Guimarães, autora de “Os Filhos do Medo”.