Por Ênio José da Costa Brito[1]
Resumo:A comunicação aponta alguns princípios básicos da Teoria Pós-colonial referente à Literatura, ilustrando com a apresentação da obra de uma intelectual negra no circuito cultural branco do Estado de São Paulo. Ruth Guimarães, professora, romancista, ensaísta, pesquisadora de tradições populares, tradutora que sempre deu voz e vez as tradições populares, tem sua obra muito pouco estudada. Sua obra literária dialoga com o universo artístico-cultural brasileiro-popular ou erudito- e, inscreve-se no contexto literário como signo de identidade local e nacional. O esquecimento da contribuição de escritoras negras tem conseqüências históricas e sociais, pois, contribui para a desqualificação sócio-racial dos afro-brasileiros e fomenta tendências racistas.
Introdução
Meu envolvimento, com a Teoria Pós-Colonial,começou quando passei a estudar questões relativas à diáspora africana. A negação, o não reconhecimento da contribuição dada pelos escravizados na construção das nações americanas, em especial do Brasil, me incomodava.
Hoje, tendo aprofundado a compreensão das propostas teóricas e práticas da Teoria Pós-Colonial e ampliado minha visão da longa experiência diaspórica, partilho a convicção adquirida acerca da potencialidade epistemológica presente na Teoria Pós-Colonial com mestrandos e doutorandos em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sua utilização na análise do passado e do presente tem contribuído para desvelar a real contribuição dada pelas culturas africanas à nossa visão de mundo.
No primeiro semestre deste ano, nossa atenção voltou-se para a literatura dos povos que passaram pela experiência colonizadora, o que possibilitou reflexões e discussões acaloradas. Relembro algumas questões: é possível o surgimento de literaturas desvinculadas do padrão eurocêntrico? Quais os caminhos para uma literatura e estudos pós-coloniais autônomos? Como o sujeito pós-colonial visualizado na literatura pode superar o mutismo e assim narrar e anunciar as suas experiências como o Outro?
Em meio a estas e outras discussões, recebi a Revista Ângulo-Cadernos do Centro Cultural Teresa D’Ávila[2], um número monográfico, todo ele dedicado a escritora.Ruth Guimarães. Ao lê-lo, percebi quanto os textos iluminavam as discussões que vínhamos realizando. A revista resgata a vida e a obra de Ruth Guimarães, que uma mentalidade colonial, ainda presente entre nós, acabou relegando ao esquecimento e ao silêncio.
Nossa intenção nesta comunicação é num primeiro momento relembrar a vida e obra da autora e em seguida olhar sua obra à luz da Teoria Pós-Colonial.
Do vale do Paraíba a paulicéia desvairada.
Aos 13 de junho de 1920, Ruth Guimarães nasceu em Cachoeira Paulista, no vale do Paraiba. Muito cedo, perdeu os pais, o pai aos 12 anos e a mãe os 16, morou com os avós desde os 8 ou 9 anos de idade.
Numa de suas crônicas, intitulada Entardeceres, escreveu: “Fiquei órfã de pai e mãe muito cedo e fui acolhiada por meus avós maternos, já bem idosos, pois minha mãe era a caçula de onze filhos. Minha avó era uma curiboca, mestiça de preto, indio e português…meu avô português”(GUIMARÃES,2014, p.32).
Em outra crônica, escrita aos noventa anos, intitulada Anoitecer, relembra:
eu vivia na e com a velhice, sem estranhá-la porque a meninice se adapta facilmente.Os meus dois velhos, à medida que a vida continuava eles a iam perdendo…Quando eles precisaram realmente de mim, eu não estava mais em casa tinha saido para trabalhar na capital (GUIMARÃES. 2014, p.34)[3].
Aos 17 anos mudou-se para São Paulo, com seus quatro irmãos menores, onde trabalhou e estudou, com muitos sacrifícios, é verdade. Costumava dizer que em São Paulo “ficou excepcionalmente trabalheira”. Formou-se em Letras pela USP.
Sua saga literária começou com um ato de coragem, levando uns escritos seus ao romancista Cid Franca, que a apresentou ao critico literário Edgar Cavalheiro, que publicou algumas de suas poesias no antigo O Roteiro. Quando uma de suas poesias foi publicada, Ruth Guimarães entrou em profunda crise existencial e parou por um bom tempo de escrever. Voltou a escrever bem mais tarde, nas suas palavras: “Depois de dois anos, uma bela tarde, sem mais nem menos, escrevi uma página inteira. Amassei e joguei no lixo. Meia hora depois estava de joelho diante do cesto de papéis procurando a folha. Achei-a, continuei e saiu “’Água Funda”(GUIMARÃES. 2014, p.11)[4].
Casou-se com seu primo José, que faleceu em 2001, na chácara da família em Cachoeira Paulista. Constituíram uma família numerosa, que viveu em continuo sobressalto, pois, os filhos vieram ao mundo com doenças raras, com excessão do quarto Joaquim Botelho Maria. Dos nove filhos, três eram portadores da sindrome de Alport, os outros também apresentaram problemas de saúde.Sem descuidar da familia, “Ruth conseguiu publicar mais de 50 livros, de contos, pesquisas folcloricas, traduções do frances e do latim e peças de teatro” (BOTELHO, 2014,p.29).
Bem mais tarde cursou Dramaturgia e Critica na Alfredo Mesquista. Por 35 anos, ensinou língua portuguesa em colégios estaduais. Ao se aposentar voltou para a chácara da família em Cachoeira Paulista. Aos 88 anos encontrava-se à frente da Secretaria de Cultura de sua cidade e ainda dirigia a Museu de Folclore Valdomiro Silveira. Assumiu a cadeira 22 da Academia Paulista de Letras, em 18 de setembro de 2008(Cf. BOTELHO, 2014, p.29).
Projeto literário.
Botelho extrai de uma das crônicas de sua mãe a opção literária dela:
Ah! Eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Essa é a única humanidade disponível para mim. Quem me dera escrevesse com suficiente profundeza, mas claramente e simplesmente, para ser entendida pelos simples e ser o porta voz de seus anseios”(BOTELHO, 2014, p.7).
Projeto literário corajoso, na contra-mão, vindo de quem vem, uma escritora negra que se debruça sobre histórias presentes nas bordas, “histórias da roça, de gente da roça, do caipira”. Sem negar suas raízes, afirma claramente: “Nós precisamos saber da raiz negra de onde viemos. A história negra está por fazer, a literatura negra está por fazer, a poesia negra está por fazer”(GUIMARÃES apud BOTELHO, 2014, p.7).
Continuando sua fala no depoimento concedido ao Seminário Encontro de Gerações, promovido pelo Museu Afro-Brasil, em 2007, diz : “Eu não tenho paciência. Não sou uma criatura paciente, mas sou uma criatura alegre, graças aos meus ascendentes Negros “( GUIMARÃES apud BOTELHO, 2014, p.8).
Ruth Guimarães se define como uma mulher pobre, negra e caipira. O que certamente devia causar certa estranheza no seu meio. Para Ana Paula Cianni Oliveira que escreveu sua dissertação de mestrado sobre Água Funda,“ Ruth Guimarães sente-se ligada à voz feminina, à dos marginalizados,aos ecos de uma étnia historicamente oprimida e finalmente, à voz caipira”, ( OLIVEIRA apud BOTELHO, 2014,p.7). O que leva Oliveira a afirmar na conclusão de sua pesquisa:
O romance de estreia de Ruth Guimarães está inserido e dialoga com o projeto estético modernista, recuperando discursivamente singularidades do espaço regional representado ficcionalmente. Partindo do principio de que a cultura é, como afirma Laraia (2009), a lente através da qual os homens concebem o universo, Água Funda revela parte dessa lente, pormenorizando o universo rural caipira, ao evidenciar posicionamentos axiológicos ou modos como esse grupo concebe o mundo, o homem, a natureza, as relações humanas, etc, a partir de uma focalização especifica (OLIVEIRA, 2014, p.20).
Numa entrevista, publicada no jornal O Escritor da UNB- União Brasileira de Escritores, Ruth Guimarães se apresenta como uma escritora regionalista que vive e busca “transmitir com fidelidade e apuro linguistico a maneira de pensar e de viver do homen do povo”(GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014, p.107). Nesta mesma entrevista, ao comentar a obra Guimarães Rosa, que a admirava, prova deste afeto são os livros Sagarana e Grande Sertão: Veredas, autografados e dados por ele a Ruth Guimarães, ela afirma que: Sagarana é a grande obra de Guimarães Rosa, pois ele viveu “ficou subjugado por aquela força que vinha da terra e das pessoas da terra”( GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014, p.108).
Ela se queixa do fato de se poder contar nos dedos os escritores regionalistas.Na atualidade “a literatura regionalista se caracteriza pelo seu ritmo brasileiro, por retratar uma somatória de cultura, cultura da cidade pequena, cultura da fazenda”(GUIMARÃES, 2014, p.107). Pergunta então: “Onde está ela? Onde podemos buscá-la? Qual é o escritor que traz isto pra gente? (GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014,p.108). Na sua visão,
O escritor [regionalista] precisa ser uma pessoa do povo, que vive o que o povo vive, e que tenha burilado sua linguagem a ponto de ser capaz de transmitir com fidelidade e apuro lingüístico a maneira de pensar e viver do homem do povo. Eu sou caipira. Eu vivi a cultura da cidade pequena, e contei uma história (no romance Água Funda, de 1946) que respeita o pensamento e a linguagem caipira. E não só isso, mas respeitando a maneira do caipira de contar uma história,a sua maneira de pôr a linguagem( GUIMARÃES apud O ESCRITOR, 2014, p. 107-108)
Entre suas obras podemos enumerar: Filhos do medo[5], texto no qual volta-se para a figura do diabo e suas manifestações que povoam a imaginário das pessoas no Vale do Paraíba. Escreveu, ainda, Lendas e Fábulas do Brasil, História de Onça, Histórias de Jabuti e Calidoscópio- a saga de Pedro Malazarte entre outros[6]. Tradutora de inúmeros textos clássicos franceses, como Historias Fascinantes, de Honoré de Balzac, História de Alphose Daudet, Os mais brilhantes contos de Dostoiwski[7]. Do latim traduziu de Lucio Apuleo, O Asno de Ouro[8]. Autora, também, de um Dicionário de Mitologia Grega, por sinal muito bem aceito pelos estudiosos[9]. Nestas traduções, em geral, as notas e as introduções eram de Ruth Guimarães.
Para caracterizar Ruth Guimarães, romancista, ensaista e pesquisadora das tradições populares, tomo emprestado uma expressão de Eduard Glissant, “Ruth Guimarães é uma escritora risomática”[10].
Refazendo o percurso: o projeto Pós-colonial
Abordagens post-colonial ou post-colonialidade vem questionando estudiosos nas áreas das ciências humanas, onde várias vertentes tem questionado a expansão e a hegemonia da episteme ocidental, questionando balizas de estudos históricos e literários eurocentrados desde a década de 1980[11].
Já na década de 1970, os estudos culturais britânicos traziam críticas pesadas, advogando uma “indisciplina acadêmica”, dando inicio a construção de perspectivas teórico-metodologica em torno da cultura ou diferença colonial, percebida como modos de transgressão, de viver e pensar, organicamente a v ida material e espiritual.
Na visão de Stuart Hall[12], essas lutas culturais nutriram-se da “viragem linguistica”, com estudos que priorizavam as linguagens simbólicas, metafóricas, seguida de uma “viragem teórica”, que questiona profundamente a hegemonia do Ocidente nas mais diversas dimensões social, política, cultural e religiosa.
Intelectuais do terceiro mundo com suas pesquisas e reflexões priorizavam a diferença e a alteridade, resgatando memórias, histórias sobre a “herança colonial”e a “fratura social”.
Os estudos subalternos da India, do coletivo modernidade/colonialidade do Caribe e da América Latina reforçam a dinâmica critica iniciada pelos estudos culturais. Estes questionamentos, na expressão de Antonacci, voltaram atenções à expansão colonial desde o coração de disciplinas conformadoras da modernidade ocidental: filosofia, história e literatura. Áreas que marcam a cultura do Ocidente e estão atravessadas por um passado racista e colonialista, o qual, longe de haver sido superado, recria-se na cultura contemporânea, com racismos culturais e a “violência epistêmica”.( ANTONACCI, 2015, p. 2).
Na América Latina, a colonialidade, isto é, a permanência da mentalidade colonial após o termino do colonialismo, vem sendo trabalhada diuturnamente por intelectuais como Enrique Dussel, Anibal Quijano, Santigo Castro-Gomes, Catherine Wash,Walter Mignolo, Nelson Maldonado-Torres,Arthurp Escobar e Ramón Grosfoguel. Para estes autores, colonialidade se apresenta como a face perversa da modernidade. Entre os textos inspiradores desses estudos, encontramos os de Aimé Cesaire, Discurso sobre o colonialismo (1955) e Frantz Fanon, Pele negra, máscaras brancas (1952) e Os condenados da Terra (1961)[13]. Para Antonacci, estes autores,
Sem deterem-se na crítica à modernidade/colonialidade, ultrapassam seu pretenso universalismo na escuta/visualidadedo que designam diferença colonial, desde emergência de “subjetividades” com que foram vividas a conquista e a colonização das Américas, o tráfico negreiro, o escravismo, a colonialidade de seres, saberes e poderes. Em atenção crítica a transgressões culturais, em abertura a pensamentos de rastro/residuos(Glissant) ou pensamento fronteiriço, em “dupla crítica”a bases epistemológicas Ocidentais e percalços a pensares locais, investem em outras estruturas cognitivas e viveres que ultrapassam subalternidadesvigentes (ANTONACCI,2015, p.3).
Gradualmente, uma outra geografia da razão vem sendo construída, vizibilizada num projeto epistemico-politico e ético. A obra de Ruth Guimarães traz no seu bojo sementes de uma dinâmica pós-colonial.
A obra de Ruth Guimarães à luz da Teoria Pós-colonial
Quando se olha por dentro da literatura dos povos marcados pelo colonialismo constata-se a força das estratégias colonizadoras que impuseram seu canone literário, imposição que passa pelo desprezo de qualquer expressão cultural indígena, afro-brasileira ou popular.
No Brasil, ainda está por surgir uma literatura desvinculada do padrão eurocentrico, questionadora de pressupostos do padrão eurocentrista. Na verdade, pouca descolonização ocorreu no âmbito literário. O satus canônico das literaturas europeias deitou raizes profundas no país.
Examinando com atenção a obra de Ruth Guimarães pode-se constatar a presença seminal de uma dinâmica descolonial, expressa no diálogo sempre negado pela colonização com a cultura periférica. Antonio Candido no prefácio à segunda edição de Água Funda escreve: “é bom insistir no fato de Ruth Guimarães ser não apenas uma escritora bem dotada para a ficção, mas uma autoridade nos estudos da cultura popular, cultura que em Água Funda constitui verdadeira rede de sustentação “(CANDIDO, 2014,p. 18). Diálogo que insere Água Funda no contexto da literatura brasileira como representante de uma identidade local e regional.
Ruth Guimarães em Água Funda concebe como nos diz Oliveira:
Um universo historicamente constituido, Água Funda promove, por meio de uma instituição discursiva, a elucidação da identidade do homem rural valeparaibano, revelando amplamente o modo de ser, de viver, de pensar e de falar dessa comunicade ficcional, o que reforça as relações entre literatura e sociedade, como apontado por Antonio Candido ( OLIVEIRA, 2014, p.20).
Portanto, estamos diante de uma perspectiva marcadamente descolonial. O diálogo com a cultura local, com a intenção de captar a identidade cultural do caipira enuncia outra geografia da razão ao partir do corpo-politico local. Ela procura descobrir as raizes da condição humana no dia-a-dia da gente mais simples.
José Paulo Paes, ao apresentar aos leitores de O Estado de São Paulo, em 15 de setembro de 1996, o livro Contos de cidadezinha[14], aponta o gosto coloquial e a capacidade de Ruth Guimarães de,
Descobrir, no dia-a-dia da gente mais simples, as raízes da condição humana.
Descoberta a que acedemos por via de uma escrita intensa, que se vale da dialogação captada por assim dizer ao vivo e do discurso indireto empaticamente sintonizado com a interioridade dos protagonistas para, em poucos traços, pôr-nos diante dos olhos do espírito a humanidade de cada um.(PAES, 2014, p.64).
Subjetividade sempre negada pelos processos colonizadores e que Ruth Guimarães cuidou sempre de preservar e dar a conhecer na sua produção literária. Opção confirmada uma vez mais no prefácio, que escreveu para Lendas e Fábula do Brasil, quando apresenta os critérios para selecionar os contos:
Esse será o primeiro critério: a coisa comprovadamente nossa. E, para que se possa responder pela pureza da colheita, mister foi buscá-la no meio rural, nas cidades pequenas, entre gente analfabeta, que jamais leu um livro, que jamais ouviu falar de livro a não ser da Sagrada Escritura e de São Cipriano (Guimarães, 2014, p.82).
Neste livro, nas suas cem páginas, relata para os leitores, causos de mutirão, de acochar fumo, de pessegada e goiabada, de noites de São João e São Pedro e causos de quentar-fogo-de-noite-na-rua-de-Baixo. A escolha dos causos deixa transparecer a sensibilidade da pesquisadora por um lado, por outro a sua deliberada intenção de acolher toda a sabedoria e visão de mundo, presente nos causos.
Ivan Vilela, estudioso da cultura popular e da música, nos lembra que:
o caipira e seu saber tornaram-se periféricos nos modos de produção urbana-industrial. O olhar periférico atribuido ao caipira se transferiu a seus atributos. Sua produção cultural foi tratada durantes décadas como algo imperfeito, simples demais (VILELA,2015, p.74).
Ruth Guimarães, como Ivan Vilela, via na década de 1940 o caipira como alguém que resistia tenazmente uma onda de desenraizamento, que atingia a população brasileira do interior e das pequenas cidades.
Ela costumava definir-se como mulher, pobre, negra e caipira. Heloneide Studart, ao entrevistá-la para a revista Manchete , em 1982, entre outras coisas perguntou:
-Manchete-Há uma pergunta que lhe quero fazer, pois acho você a pessoa apropriada para respondê-la. Em nosso pais louva-se muito a mulata, a mulata é a tal, há versos e sambas cantando a mestiça. Isso não será mais uma conotação depreciativa, reduzindo a bela mulher escura a um papel simplesmene sexual? Não será uma reminiscência da senzala que a negra estava aí para isso mesmo?
-Ruth- Esse louvor gratuito à mulata é coisa do Rio, de Copacabana, divertimento de intelectuais. A realidade é outra.Em qualquer ponto do país, a mulata é vítima do sistema duas vezes: como mulher e como negra. É comum que ela procure sair do seu dilema através do casamento- difícil- ou através de soluções fáceis e tristes (STUDART,2014, p.49)
Na sua resposta, aponta para a presença do racismo na sociedade brasileira, ela tem consciência do quanto o racismo está entranhado no solo pátrio. Ao longo da entrevista deixa claro que um dos caminhos para superá-lo é a o da educação. “É um problema de educação”. Educação abraçada por ela como mãe, escritora e professora.
Ruth Guimarães sabe como é importante preservar a tradição e a memória do povo, memória esta conservada nas falas e nos corpos. As tradições caipiras são cantadas, dançadas, declamadas e principalmente vividas. O direito à memória e ao legado do patrimônio cultural produzido por saberes silenciados, sempre esteve presente em tudo que realizou ao longo da vida. No contato com o povo, levou adiante esta luta chamando atenção para vida caipira, desvelando outro mundo, outras formas de sentir, ser, viver, fazer, realizar e construir.
Conclusão
Ao adotar como locus de enunciação o espaço regional do vale paraibano e ocupar-se em perceber lendas, provérbios, ditados, hábitos, crenças, mito, linguagem, metáforas ligadas ao cotidiano, Ruth Guimarães resgata traços da identidade caipira, revelando o modo de ser, de viver e de pensar de homens e mulheres do povo. Na contra-mão do “ preconceito linguístico como instrumento de dominação,[que] no caso dos caipiras, aliou-se à depreciação sócio-histórica advinda das mudanças ocorridas em São Paulo no século XIX e posteriormente no êxodo rural”(VILELA, 2013, p.84).
Sua produção literária, se olhada no conjunto deixa transparecer a idéia de “interpenetração de civilizações”, ao mostrar como a população brasileira foi capaz de apropriar-se, incorporar e ressignificar saberes e fazeres dos colonizadores. Em Lendas e Fábulas do Brasil, nos relembra a ancianeidade das estórias, que “vem de longe, mas adotadas e adaptadas são brasileiras, genuínas espontâneas”(GUIMARÃES, 2014, p.84).
Ruth Guimarães, ao reexaminar o problema da presença da cultura caipira em relação à “cultura brasileira”, produz uma obra extremamente aberta, em que o riquíssimo material empírico por ela coletado oferece subsídios para descolonizar o ensino/aprendizagem de História do Brasil[15].
Ao aprofundar na produção critica de sua obra, percebe-se logo que para ela a literatura era uma experiência de vida. Ela que nas suas obras deu voz e vez ao mundo marginalizado do homem e da mulher simples, tem muito a nos dizer nos dias de hoje.
Finalizo com um dos seus versos,
Não oponhas ao meu grito
O desdém infinito dos astros impassíveis.
Quem entende o que escreveste com as estrelas?
De braços abertos, na cruz.dos quatro caminhos,
eu também sou uma cruz, traçada no chão duro
com carvão.
Como se fosse a Tua sombra,
estendida no chão.
Esse gesto agoniado de abrir os braços
para o infinito ou para o amor,
gesto de cruz que é Teu e meu
nos aproxima, meu Senhor!
Referências Bibliográficas
ANTONACCI,M.A.História e cultura em Estudos Post-Coloniais. Apostilha, 2015.
BOTELHO, J.M.G. Ruth Guimarães, da palavra franca, p. 6-8.
———————-. A missão de Ruth Guimarães, p.28-29.
GUIMARÃES, R. Entardeceres, p.31-32.
———————.Anoitecer, p.33-34.
———————.Literatura Infantil. Prefácio Lendas e Fábulas do Brasil, p.82-85.
JORNAL DE SÃO PAULO. De menina espeloteada e petulante à romancista benquista pelo público e elogiada pela crítica. Domingo, 22 de setembro de 1946, p.9-11.
JORNAL O ESCRITOR. Ruth Guimarães: leitura e brasilidade, p. 106-109.
OLIVEIRA, A.P.M.C.de. Um mergulho em Água Funda e suas distintas vertentes, p.19-22.
PAES, J.P. Uma contista do interior revive sua fala, p.63-64.
SÁ, O. de. A “bruxa” de Cachoeira Paulista, p.122-123.
STUDART, H. entrevista com Ruth Guimarães: “Não é fácil ser mulata”, p.47-49.
VILELA,I. Cantando a própria História. Música caipira e enraizamento. São Paulo: Edusp,2013.
*Comunicaçào feita no 28 Congresso Internacional da SOTER- Religião e Espaço Público: cenários contemporâneos-2015. Nos Anais do Congresso encontra-se uma versão reduzida desta Comunicação.
[1] Professor Titular PUCSP, Programa de Pós Graduação em Ciências da Religião. E-mail brbrito@uol.com.br
[2] O Centro está localizado em Lorena (SP). Agradeço a amiga Olga de Sé, escritora e educadora que me envia religiosamente a Revista Ângulo. Todo material de pesquisa utilizado nesta comunicação foi extraído do número dedicado a Ruth Guimarães. Nas Referências Bibliográficas, indicaremos o nome do autor do artigo, o titulo e as páginas da Revista Ângulo 137, Abril- Junho de 2014.
[3] “ Entre 1963 e 1968, convidada por Emir Macedo Nogueira, então editor-chefe da Folha de S. Paulo, Ruth escreveu crônicas semanais, com Cecília Meirelles, Pe.Vasconcelos e Carlos Heitor Cony… No total, foram quase 300 publicações, com o resgate de tipos populares, usos e costumes, flagrantes do cotidiano de vários lugares do Brasil” (2014, p.95)
[4] GUIMARÃES , Ruth. Água funda.Porto Alegre: Edição da Livraria Globo, 1946.
[5] GUIMARÃES,Ruth. Filhos do medo. Porto Alegre: Editora Globo, 1950.
[6] GUIMARÃES, Ruth. Lendas e Fábulas do Brasil. São Paulo: Editora Cultrix, 1972; História de Onça. São Bernardo do Campo: Usina de Idéias, 2008; Histórias de Jabuti. São Bernardo do Campo: Usina de Idéias, 2008; Calidoscópio- a saga de Pedro Malazarte. São José dos Campos: JAC Editora, 2006.
[7] GUIMARÃES, Ruth. Histórias Fascinantes, de Honoré de Balzac.( Seleção, tradução e prefácio). São Paulo:Editora Cultrix, 1960; História de Alphose Daudet (Seleção, prefácio). Tradução de Ruth Guimarães e Rolando Roque da Silva. São Paulo: Editora Cultrix, 1986; Os mais brilhantes contos de Dostoievski ( Introdução, seleção e tradução). Rio de Janeiro: Edições Ouro, 1966
[8] GUIMARÃES, Ruth. O asno de Ouro de Apuleo. Rio de Janeiro: Edições Ouro.s/d.
[9] GUIMARÃES, Ruth. Dicionário de Mitologia Grega. São Paulo: Editora Cultrix, 1972.
[10] GLISSANT, É. Introdução à poética da diversidade. Juiz de Fora: EDUFJF,2005.
[11] A bibliografia é ampla, apresento alguns textos de Walter Mignolo que tem contribuído muito na construção de uma epistemologia renovada. Cf. MIGNOLO, W. “Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistemica. In: SANTOS, B. de S. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo; Cortez, 2005; “A colonialidade de cabo a rabo”. In: LANDER, E.(org.).A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Clacso, 2005; “ El giro gnoseológico decolonial”. In:CÉSAIRE, A.(org.) Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Akal Ediciones, 2006a; “La descolonización del ser y del saber”. In: SCHIWY,F.; MALDONADO-TORRES,N.;MIGNOLO,W. Des-colonialidad del ser e del saber. Buenos Aires: Edicones del Signo, 2006b; “ El desprendimiento: prensamento critico y giro descolonial”. In: SCHIWY,F.; MALDONADO-TORRES,N.;MIGNOLO,W. Des-colonialidad del ser e del saber. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2006c
[12] Cf. HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003.
[13] CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. Porto: Editora Poveira,1971 [1955]; FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: Edulfa, 2008 [1952]; Os condenados da Terra .Civilização Brasileira,1968 [1961].
[14] GUIMARÃES, Ruth. Contos de cidadezinha. Lorena: Centro Cultural Teresa d’ Ávila,1996.
[15] Sua pesquisa oferece subsídios para dinamizar o potencial pedagógico descolonial das Leis 10.639 e 11.645.