O que existe é gente
Ruth Guimarães
Um dia desses – afinal de contas tudo aconteceu agorinha mesmo – andei falando sobre linguagem e escrituras. Falando sobre o escrever. Eu comecei a escrever porque tinha umas ideias a respeito da linguagem, sempre gostei muito de discutir a linguagem dos autores. Li grandes escritores, vi por exemplo que Lima Barreto tem muitas ideias, vai fundo em seus pensamentos, mas tem uma linguagem horrível. Não era uma linguagem horrível, não. Era uma linguagem muito boa, mas sem aquele aval do escritor que sabe escrever. Jorge Amado… Jorge Amado comove as pessoas, tem uma linguagem bonita, dá adjetivação, é um narrador muito bom, é um descritivo também muito bom, mas não sabe escrever. Por isso prejudicou a perenidade dos livros dele.
Existe uma leviandade de se fazer o que não se sabe. E resolvi escrever sabendo o que eu estava fazendo, mesmo se eu não me tornasse um escritor, uma criatura de ideias, iria pelo menos fazer da língua um verdadeiro instrumento de trabalho.
Se escolhemos ser lixeiros, que sejamos o lixeiro; se escolhemos ser ourives, que sejamos o ourives; e se escolhemos ser escritores, que sejamos o escritor.
Por isso cuidei da forma. Por isso entrei na USP, na seção de Letras Clássicas, para aprender latim, grego e português, três línguas mortas. Minha língua portuguesa. Preocupo-me com a linguagem, com a adequação à forma. Ser escritor é mais do que escrever, apenas. Falo da literatura como ofício, não como desabafo, denúncia, declaração de amor. É preciso um comprometimento profissional com a literatura, com o apuro da forma, com a experimentação da linguagem.
Eu queria escrever como se falava, mas não escrever como se falava à maneira do Guimarães Rosa. Briguei muito com o Guimarães Rosa, imagine que atrevimento! Mas eu dizia: “Guima, você não tem direito de cunhar palavras, de criar palavras, a palavra só existe se tiver um povo que fale, a palavra é povo. E você põe aí, por exemplo, o mato aeiouava. Muito bonita a palavra, muito engraçada também, mas não vale nada, quem vai falar essa palavra daqui pra frente? Só você. Nos seus livros, daqui a não sei quantos anos, esta palavra que está aqui não existe”.
Palavra que não é de povo é palavra morta. Língua universal é ter um monte de gente usando. O inglês é universal. Usar o esperanto – ah! O que é isso? Não tem povo que fale, não existe. O que existe é gente. É este então o meu sentido, a direção da minha escrita. Quando eu escrevi, eu quis escrever numa linguagem que ninguém tinha usado, a linguagem valeparaibana. Qual é o escritor que escreveu o valeparaibano? Só eu. Eu tinha direito primeiramente porque sou povo daqui, sou caipira. Segundo porque eu tinha uma experiência grande da linguagem mais profunda, da linguagem que se usa para rezar, por exemplo, da linguagem que se usa para amar, sou intérprete de uma língua que existe, que é o valeparaibano: e eu escrevi em valeparaibano. Um pouco de Minas também, porque vim de uma fazenda de Minas. Não nasci lá, sou de Cachoeira Paulista, mas vim de uma fazenda de Minas. Escutei aquelas conversas todas lá e pus no livro com a maior fidelidade possível, porque sou caipira, mas em cima do caipirismo, da caipirice, eu sou uma criatura estudada, trabalhada.
Vou me repetir, mas não faz mal: eu conto histórias para quem nada exige, e para quem nada tem. Para aqueles que conheço. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a minha única humanidade.