Regina Helena Paiva Ramos
Acabo de ler “Memórias da Casa Velha – Biografia e legado de Ruth Guimarães” que Júnia e Joaquim Maria Botelho escreveram, juntos, evocando a vida de sua mãe, o tempo dela, os escritos dela, as cartas que escreveu e recebeu, as tragédias que viveu. Uma narrativa interessante onde os dados biográficos se entremeiam a críticas, cartas, notícias, confidências e memórias da vida que viveram juntos.
Ruth Guimarães (1920-2014) é uma escritora (propositalmente não estou usando o verbo no passado) do nível de uma Lygia Fagundes Telles e de um Guimarães Rosa. Não estou exagerando e nem sou eu, apenas, a dizer isso. Foram os críticos de literatura quando do lançamento de “Água Funda”, seu romance de estreia, em 1946. Na mesma época, Amadeu de Queiroz, o carimbamba (*) da Drogaria Baruel – onde se reuniam os escritores da época – comparou “Água Funda” a “Macunaíma”. Sem concordar plenamente com isso Antônio Cândido escreveu no Diário de São Paulo, (18/071946) longa crítica em que examina os dois livros, elogiando muito a escritora. Foi também prefaciador no relançamento do livro, mais de meio século depois.
Respeitada, admirada, louvada Ruth Guimarães! Por gente gabaritada, por leitores, escritores e por uma jovem repórter que começava na profissão – esta que vos fala – e que na década de 50 escreveu carta a Ruth Guimarães falando de sua admiração por ela. (E Ruth respondeu!)
Só para uma rápida ideia da amizade e do respeito que outros escritores tinham por essa companheira de letras, vejam a dedicatória que Guimarães Rosa escreveu para Ruth: “À Ruth Guimarães, parenta minha e uma das pessoas mais simpáticas que encontrei na vida; e que escreve como uma fada escreveria – com o grato apreço e a amizade de Guimarães Rosa.”
Ruth foi a primeira escritora negra a ter projeção nacional.
E então por quais motivos essa escritora fantástica não é conhecida e reconhecida como seus pares – Lygia, Rosa, Mário de Andrade?
Por ser “negra, pobre e caipira”, digo quase repetindo Ruth, num artigo em que falava da situação do negro e dizia “negra, escritora, mulher e caipira. Eis aí minhas credenciais”.
Mas a mocinha descendente de portugueses, negros e índios – essência do povo brasileiro – sabia das dificuldades e foi à luta. Tendo perdido os pais muito jovem, viveu com os avós numa chácara em Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba, tomou conta dos irmãos memores e depois partiu para São Paulo, empreguinho modesto de sol a sol, mas a menina de 18 anos arranjava tempo para ler, escrever, ler mais, escrever muito e sempre. Casada com o primo Zizinho, o grande amor de sua vida, tiveram nove filhos e Ruth, já escritora, cuidava dos filhos, do marido que ficou tuberculoso, dos empregos e escrevia e escrevia e lia e escrevia mais.
Professora, tradutora (de francês, do italiano e do latim), folclorista, pesquisadora, jornalista (foi repórter de “Quatro Rodas” e da “Revista da Semana”), romancista, contista. Cursou Letras na USP assim que a vida lhe deu uma folga. Arranjou tempo para cursar a Escola de Arte Dramática à noite. Foi eleita para a Academia Paulista de Letras, primeira mulher negra a integrar essa entidade. Com tudo isso ainda fazia horta na chácara, regava plantas, dava amor aos filhos e ao marido, o apaixonado Zizinho, fotógrafo que participou com ela de várias reportagens.
Não era apenas escritora de vários livros. Ruth prezava a integridade, ensinava valores aos filhos, cultivava amigos e, como diz seu filho Joaquim, continuava “caipira orgulhosa de suas raízes”.
Talento imenso, muito amor, sucesso como escritora, admirada por todos, mas a vida não lhe foi sempre risonha e franca. Viu morrer sua primogênita. Dos seus nove filhos, três eram excepcionais e ela os viu partir, um a um. Cuidou do marido tuberculoso e foi o sustento da casa. Teve sérios problemas de saúde e ficou internada durante meses. A cada tragédia ela se erguia novamente e então era a volta ao trabalho, às traduções, às leituras, à escrita.
“Minha arma é minha máquina de escrever”, disse, um dia. Mulher poderosa, armada para o bem.
Como gostei desse livro em que Júnia e Joaquim falam da mãe escritora.
E que escritora!
Quem ainda não conhece Ruth Guimarães deve correr atrás dos livros dela. Não é possível apreciar literatura e não conhecer Ruth Guimarães.
(*) Carimbamba é como se autodenominava o dono da Gurgel, por não ser formado em farmácia. Significado: curandeiro.
Regina Helena Paiva Ramos