Escritora de ‘Água Funda’ foi a primeira negra a ganhar projeção nacional, com o romance publicado em 1946
Reportagem de Tayguara Ribeiro
(Folha de S. Paulo, 13.nov.2020)
Era um terreno com muitas árvores, perto do rio Paraíba e perto do trilho do trem. Ali cresceu e ganhou corpo uma paixão pela leitura que levaria Ruth Guimarães a transpor os limites da pequena cidade de Cachoeira Paulista, no interior de São Paulo. Naquela casa onde nasceu, cresceria uma imaginação que, transposta para o papel, ganharia vida em mais de 51 livros entre ensaios folclóricos, romances, contos, traduções e crônicas.
A mescla entre erudição e cultura popular que Ruth Guimarães imprimiu em boa parte de sua obra e o pioneirismo de ter sido uma das primeiras mulheres negras a ter um romance publicado no Brasil mostram a importância de revisitar sua produção neste 2020, que marca seu centenário.
Guimarães foi a primeira escritora negra brasileira a ganhar projeção nacional. O romance “Água Funda”, publicado em 1946, rompeu barreiras não só para ela, mas também para gerações de outros escritores negros que sentiram em seu trabalho representatividade cultural e incentivo para ousar buscar um espaço. Ela morreu em 21 de maio de 2014, aos 93 anos.
“A Ruth é conhecida pelo romance ‘Água Funda’, essa é sua grande obra”, diz o escritor Tom Farias, autor do livro “Carolina: Uma Biografia”, sobre a escritora Carolina Maria de Jesus, e curador da FlinkSampa, festa de literatura e cultura negra.
“Penso que a área dela era realmente a ficção e ‘Água Funda’ é sua obra máxima”, diz. Farias lembra, no entanto, que existe muito material sobre Ruth Guimarães ainda a ser explorado –”o universo dela é muito grande”.
Em 2008, a escritora assumiu uma cadeira na Academia Paulista de Letras. Guimarães era formada em filosofia pela Universidade de São Paulo e tradutora do latim, tendo vertido ao português “O Asno de Ouro”, único romance latino da Antiguidade a sobreviver até os nossos dias.
Além de “Água Funda”, outra marcante criação da escritora foi “Calidoscópio – A Saga de Pedro Malazarte”, fruto de uma pesquisa que reuniu centenas de histórias sobre esse peculiar personagem do imaginário brasileiro.
Guimarães foi cronista deste jornal entre 1961 e 1969 e entrevistou, no começo de 1969, Érico Veríssimo.
Para celebrar seu centenário, a Faro Editoral publicou neste ano “Contos Negros” e “Contos Índios”, dois livros inéditos da autora. Outros dois devem ser lançados no primeiro semestre do ano que vem, “Contos da Terra e do Céu” e “Contos de Encantamento”.
Os livros tratam de espiritualidade e misticismo e são parte do trabalho de campo em que Guimarães pesquisou, no Vale do Paraíba, no sul de Minas Gerais e nas cidades paulistas de Bragança Paulista, Atibaia, Suzano e Mogi das Cruzes, histórias afro-brasileiras e indígenas passadas de geração em geração oralmente.
Outra homenagem ocorre na oitava edição da FlinkSampa, nos dias 19 e 20 de novembro, que, organizada pela Universidade Zumbi dos Palmares e pela ONG Afrobras, lança a edição comemorativa de 70 anos do livro “Os Filhos do Medo”, em que a escritora aborda as superstições em torno do diabo que rondam boa parte do imaginário popular.
Mesmo que “Água Funda” seja o livro mais famoso e lembrado da autora, seu filho, Joaquim Maria Botelho, de 65 anos, conta que a mãe tinha um carinho especial por “Contos de Cidadezinha”, publicado em 1996. “Ela gostava e eu também. E acredito que foi [sua obra] mais madura”, diz o jornalista e também escritor.
“Escrevo para que, afinal? Para obter honra e glória? Para poder dizer tudo o que penso?”, questiona a autora em um dos trechos do livro. “Ah! Eu conto histórias para quem nada exige e para quem nada tem. Para aqueles que conheço: os ingênuos, os pobres, os ignaros, sem erudição nem filosofias. Sou um deles. Participo do seu mistério. Essa é a única humanidade disponível para mim.”
Mãe de nove filhos, Guimarães começou a carreira jovem e enfrentou muitos obstáculos. “Acho que ela não tinha a dimensão da importância que poderia ter”, diz Botelho sobre o início de carreira da escritora e de sua percepção, naquele momento, sobre a representatividade de ser a primeira mulher negra a publicar um livro de grande repercussão no Brasil, poucas décadas após o fim da escravidão.
“Claro que ela sabia que a vida dela enquanto negra era muito difícil. Ela trabalhou em empregos modestos, lavou prato. Alguns patrões, depois de um tempo, descobriram que ela tinha leitura, conhecimentos, e ela acabou virando secretária do Laboratórios Torres [empresa farmacêutica]”, conta Botelho sobre a chegada de Ruth Guimarães a São Paulo. “Ela era muito interessada por literatura, desde jovem.”
Ela chegou à capital paulista aos 17 anos, logo depois da morte da mãe. Sozinha na cidade, conseguiu um emprego, alugou uma casa, na Vila Formosa, bairro da zona leste, e trouxe os irmãos.
Da infância, dos ensinamentos dos avós e das andanças pelo interior vieram as inspirações para contar as histórias, tradições e sabedorias populares. Na juventude em São Paulo, por meio de colegas e dos trabalhos que exerceu na capital paulista, surgiram amizades com pessoas ligadas à literatura.
Mário de Andrade deu boas orientações a ela quando a autora mostrou seus manuscritos. Os dois se conheceram no começo dos anos 1940, depois que Guimarães enviou uma carta ao autor de “Macunaíma”. Ela mostrou a ele as pesquisas que tinha feito e que resultaram no livro “Os Filhos do Medo”.
Da convivência com nomes como Jorge Amado e Péricles Eugênio da Silva Ramos surge admirações mútuas. Quando, aos 26 anos, ela publica “Água Funda”, Antônio Cândido faz críticas favoráveis ao livro. Os dois se tornariam amigos a partir dali.
Segundo Tom Farias, a obra da Ruth Guimarães pode ser dividida em três ou quatro partes. A parte da ficção, com romance e contos, os estudos folclóricos brasileiros, as crônicas em jornais –a escritora atuou em jornais da capital paulista, do interior e até de outros estados– e a poesia —”ela é precoce, começou a publicar com dez ou 13 anos poemas em jornais de Cachoeira Paulista”.
Fernanda Rodrigues de Miranda diz que a pluralidade foi a marca da carreira de Guimarães. “Ela tem uma produção intelectual muito variada, que passa por vários gêneros discursivos, como conto, crônica, romance, tradução. Mas ela era também uma grande pesquisadora, muito interessada nos universos culturais e simbólicos da região do Vale do Paraíba”, diz a doutora em letras pela USP. “Ela recolheu desses universos algumas preciosidades, que depois se tornaram matéria-prima para sua escrita literária.”
Segundo Miranda, Guimarães trabalhava com os materiais que “aprendemos a entender como modernistas, a fala e a paisagem do Brasil profundo, a estética menos formalista e mais espontânea, a presença de lendas, contos orais e o universo mágico da cultura caipira”. Porém, lamenta a pesquisadora, a escritora ficou à margem dos processos de canonização modernista.
Botelho lembra que problemas familiares dificultaram, em alguma medida, a presença da escritora nos círculos literários. “O meu pai ficou doente, com tuberculose, e ela precisou cuidar dos filhos. Depois de se afastar, retomar fica difícil”, avalia ele.
“O fato de ser negra, pobre, mulher e vinda do interior jogou contra ela na carreira”, diz o filho.
Segundo Miranda, Guimarães é uma autora centenária que ainda precisa ser descoberta. “Ela não está nas escolas, por exemplo, e não aparece nos cursos de letras ainda”, diz. “Ela é uma grande autora, seu romance traz uma elaboração estética para a experiência de ser brasileiro e nos permite refletir sobre os nossos entraves, ainda herdeiros da velha síntese casa grande versus senzala.”
De acordo com a pesquisadora, no Brasil, o sistema literário se sustenta no silenciamento sistêmico da autoria negra. Isso se aplicaria, segundo ela, a todas as instâncias do texto, desde a pesquisa, no corpo docente das universidades, nos livros didáticos, nas traduções, edições e reedições, incluindo o jornalismo e os prêmios literários. “Em todas essas instâncias a presença negra é ausente ou minoritária”, diz Miranda.
Segundo Miranda, é fundamental revisitar escritoras como Ruth Gumarães para ajudar a criar novas narrativas e para abrir espaço para novas vozes. Botelho diz que a força da produção de sua mãe já conseguiu impulsionar outros trabalhos. “Eu não tenho dúvidas de que ela foi inspiradora para muita gente.”
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