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Um tal de Zé

Por Júnia Botelho
(texto editado. Versão original vencedora do Prêmio Talentos da Maturidade, do Banco Real, hoje Santander, em 2002)
(...)
José.
Ficou velho. Odiou tanto essa condição, se “arrependeu” de ficar velho, dizia, que preferiu morrer. Abandonou os compromissos sociais “agora que sou velho não tenho obrigação de nada, posso tudo, eu faço o que eu quero”; despiu máscaras, despiu terno, despiu casca.

A velhice desnudou dignidade, desnudou condição humana. Só não conseguiu tirar-lhe essência: a vida que teve, reproduzida nas vidas que fez,

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biogenéticas ou não.

(...)
José ele se chamava. Fotógrafo. Sua máquina era seu terceiro olho, aquele que nos desvenda o mundo. Apreciava tudo com muito cuidado, meticulosamente. Esperava a luz apropriada, preocupava-se até mesmo com a direção do vento. Outro Zé, desta vez o “seu” Zé Barbeiro, homem simples, que entendia muito bem do seu métier de fazer barbas e cabelos, e só, estranhava o procedimento de procura de perfeição de seu homônimo:
“dona Ruth, acho que o ‘seu’ Zizinho ‘tá ficando maluco. Ele ‘tá ali agachado no meio do mato, tirando retrato de pito-de-saci!”.
(...) O instrumento de trabalho de José era o olhar, a máquina extensão. Ele piscava – a máquina piscava também, e produzia uma obra de arte. Que diafragma, que foco, que nada! eram retina e pupila, isso sim! Enquadrou a luz, enquadrou a sombra.
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A tecnologia calçou as botas de 7 léguas e passou por cima de nossas cabeças, pensava José. O mundo da produção captação transmissão processamento armazenagem das imagens aperfeiçoa-se, permite uma construção tão perfeita que é difícil dizer se o que vemos é real ou uma reconstrução. Máquinas diferentes... “que história é essa de só apertar um botãozinho?” espantava-se José. Ele não admitia as simplificações, porém sua escolha não impedia os passos da tecnologia. Aos poucos foi sendo dispensado de suas funções, já não mais ensinava a ver. E cegou.

1921 foi quando nasceu meu pai. No Vale das Cidades Mortas de Monteiro Lobato. No vale do rio que se chama Paraíba, rio que sai do Estado de São Paulo e chega ao Rio de Janeiro, acompanhando o viajante, volteando, ondeando, ilhando, cantando. Encantando o sol. Mas gritando de dor, pois está doente.
Meu pai e o rio. Entre rio e homem justapostos se estabeleceram afinidades, intimidades e conflitos que se efetivaram numa interação de profundos efeitos.
(...) Antes de cegar, meu pai enxergava as feridas do rio, fotografava homens que o sangraram.
Como não podia lutar contra Deus e Seus mandamentos, contra o câncer que lhe comia a carne, contra o Alzheimer que lhe carcomia o cérebro e também a alma, então dedicava-se a fotografar a miséria exposta do seu amigo rio. Viu o que matava o seu companheiro de desventuras no entanto esse homem não tinha mais tempo. O rio claro de sua infância sofria tanto quanto ele, chorava tanto quanto ele.
(...) Ah! Mas José estava morrendo... estava tão exangue, sentia-se tão inútil, não podia fazer mais nada.
Oras, mas o rio também tinha que tomar uma atitude! Tinha que ser fiel àquele que já não podia estar ao seu lado. Mas esse rio também envelhecia. E os finais de tarde eram cada vez mais purpúreos, manchando os olhos. Estavam os dois agonizando.
(...) O olhar que José tinha para seu rio era muito afetuoso.
(...)

Mesmo se formos bons para o rio, às vezes ele pode ficar colérico. Ele enche, incha, transborda, atravessa seus limites e invade. Depois se arrepende,

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Botelho Netto e uma aluna

se acalma, volta, esvazia. Como se nada tivesse acontecido. Nem vê o que deixou para trás. Destroços não lhe dizem nada, somente coisas no caminho.

(...)
José era professor. Educador. Falava alto, dogmático, dono da verdade. E brigava por isso.
Ai! daquele que jogasse lixo no seu amigo rio! Não usava a palavra preservação porque rótulos não combinavam com ele; não queria saber de ecologismos, meioambientalismos.
Muito falatório e pouca mão na massa não adiantam nada. A casa está ruindo, todos estão vendo e quem é que pode fazer alguma coisa?
Os predadores estão no seu cérebro e no do rio, é preciso agir. “Eu não mudo nada no mundo, que minha presença ou ausência não faz diferença” diria José, “saio eu, daqui a pouco tem outro no meu lugar. Mas o rio morre e morre tudo em volta. Seca, esturrica, apodrece, cheira mal, faz adoecer e o círculo se fecha e então fica mais difícil de resolver. Quem é que pode ouvir este meu grito?”
(...)
É. Acredito que ele teria gostado de falar disso. E para finalizar tocaria uma modinha no seu violão, naquele jeito seresteiro e boêmio.
Envelhecer tem certas vantagens, as pessoas mudam de opinião sobre o que é certo e o que é errado. Já não tem mais importância alguma ser seresteiro. Melhor dizendo: é até mesmo valorizado.
José não desistiu, não. Ele agora está morando na história de Guimarães Rosa, à terceira margem do rio. E só sai de lá depois que seu amigo rio parar de sangrar. Ele também sangrou. E sabe o quanto doeu. Então ele não pode se calar. Nós, os filhos todos do tal de Zé, aqueles que ele gerou, aqueles que ele criou, aqueles que ele educou, aqueles que ele ensinou a ver e a enxergar, pedimos: por favor, tirem nosso pai da terceira margem.

Botelho Netto por si mesmo

“Pássaro cativo (história de menino)
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Botelho Netto

Quando eu era menino... Não! não se preocupem, não vou contar a história ab ovo. E nem é preciso: a fração de um dia, algumas horas bem vividas podem compor, inteirinha, a travessia.
Bem... antes dos sete anos aprendi a ler com meu pai, a poder de reguadas. É que eu, sabendo ler, mamãe, analfabetinha, ganhava um ledor de novelas, daquelas distribuídas em capítulos, às quintas-feiras. Aprendi a ler, bem, desempenado, não de soquinho como fazem os repórteres de televisão, hoje. Então, no segundo ano do Grupo, setembro de 1928, festa da ave, fui escalado como representante da classe para declamar. No fim, a comemoração não passava (não passsa) de um rosário de declamações em louvor de nossa irmãzinha ave. Nunca fui bom de decoreba e tentei sair dessa mas a professora, D. Eufrásia, quem diz que me livrava a barra?

No pátio. Sem cobertura, sol de lascar. Todo mundo na fila, imóvel, rígido, cada aluno-poeta desesperando a vez de subir no pelouro. O “Pássaro cativo”, de Olavo Bilac – Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac, o próprio nome da fera já se harmoniza num sonoro alexandrino – a minha poesia eu a ouvi seis vezes antes da minha... execução. E cada vez que um menino desfiava o “Pássaro cativo” – várias estrofes, mais de cinquenta versos, acho até que uns quinhentos, ficava mais infeliz, mais vazio, mais desamparado. Terminei o poema? qual o quê! Fui um fiasco: fiiiiiiiiii, fiiiiii! Fiasco, a coisa mais humilhante e que as outras crianças, com a crueldade da criança, não perdoam.

Me fiz homem agarrado aos livros e aos poemas. E hoje, o que estou fazendo aqui? Me libertando do Pássaro Cativo, de Bilac, de dona Eufrásia, da vaia dos meninos. Por isso vim, não infeliz, nem desamparado, mas por meu gosto e de alma leve colocar-me ante vocês para contar esta historinha sem fundo moralístico, sem nenhuma profundidade psicológica, sem nenhum mérito.”

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