Um poema da jovem Ruth Guimarães

Aos 19 anos, a escritora publicou no famoso quinzenário Roteiro um poema sobre o caboclo

O quinzenário cultural Roteiro, que teve entre seus fundadores Antonio Candido, durou apenas nove edições, mas é considerado um clássico da literatura modernista. Na primeira edição, de 5 de maio de 1939, Ruth Guimarães publicou o seu primeiro texto em veículo de grande expressão. Foi um poema intitulado “Caboclo”. Está no canto superior esquerdo da página 9 da edição inaugural do quinzenário. O texto integral está divulgado a seguir.

CABOCLO

Olha em torno, caboclo, e vê que nada falta
para seres feliz.
No chão de terra socada
um pé de mato e uma esteira,
à sombra da gameleira do quintal.
A choupana onde a viola pendurada
sugere descantes líricos,
− porque tu és também sentimental
– só tem uma janela
como a casinha amarela do joão-de-barro.
É pequena para os ambiciosos da cidade.
Mas tu cabes tão bem dentro dela,
com tua felicidade!
Tu és tal qual um passarinho solto
que vive não sabe como, voa, não sabe por quê.
Mas canta porque está alegre;
porque cantar é uma necessidade da sua garganta;
que canta contra a vontade;
que canta mesmo não tendo nem mágoas para espantar.

Caboclo feliz!
Não tens problemas.
Nem mesmo o X de uns olhos claros de mulher.

Teu romance é simples como é simples tua vida:
queres uma cabocla bonita que te quer.
Que usa vestido de chita, uma flor nos cabelos,
e anda bamboleando os quadris,
com um não sei quê de feliz no sorriso feliz.

E tem um riso claro que aflui dentre os dentes brancos,
como dentro dos barrancos aflui a música das corredeiras.
E tem cheiro de planta pisada
esmagada,
planta boa que perfuma o pé que a maltratou.
E movimentos sinuosos de veio d’água coleante;
e suavidades de rola enamorada;
ingenuidades,
sutilezas,
maciezas de seda...
... e até gosto:
gosto de fruta verde, ité, ácida, azeda,
mas cheirosa e gostosa como quê.

Tu também sonhas, caboclo:
“... capim melado ondulando nos cerros...
Uma vaquinha mansa...
Uma esperança na fartura da colheita...”

Depois o rancho melhorado e a cabocla ao teu lado.
... e a vida inteira tão boa, tão linda, tão igual,
como a vida dos pássaros, das flores...
Dos rios que rolam...
De rolas que arrulham...

Mas no dia em que chega o desengano,
resignado, filósofo do mato,
tu deitas na esteira,
olhas longe e resmungas:
“Podia ser pior”.

Consola-te, caboclo, que esta vida é assim mesmo.
E a gente está sempre querendo
qualquer cousa melhor.

Roubaram-te o teu sonho que adoravas?
Carrega-te de flores
como os ipês dourados das campinas:
aceita a lição de ouro dessas flores pequeninas!
A vida não é má.
És o culpado se te desiludes
pois a sonhaste melhor do que ela é.

Olha o teu rancho de sapé,
a passarada no arvoredo,
cantando a eterna canção das frondes e dos ninhos.
Nada está diferente porque sofres.
É tudo a mesma cousa.
Foi apenas a tua alma que mudou.
Somente os ipês floridos se desfolham
como o teu sonho já se desfolhou.

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